Foi outro grande dignitário da Língua Portuguesa, Fernando Pessoa, que apelidou o Padre António Vieira de “Imperador da Língua Portuguesa”, com a dupla autoridade que lhe assistia: a de um dos maiores cultores da nossa língua, e a de uma cosmovisão multiforme, tanto da condição humana, como da cultura portuguesa.
Com efeito, poucos portugueses se impuseram, nacional e internacionalmente, à memória das nações, pois não cabem nessa galeria de génios só os grandes navegadores e políticos, mas também os religiosos, os homens de Letras, das Ciências, e das Artes.
E Vieira é um deles, nos dois grandes cenários que definem os clássicos: o da vida, e o da memória que deles se conserva.
Dotado de um temperamento aguerrido, apaixonado, apesar de saúde frágil, pôs todas as suas forças ao serviço da fé e do duplo império que queria construir: o da Realeza, e o da Fé Católica-Quinta Monarquia da História do Mundo!
Por isso concitou não poucos inimigos, desde os colonos esclavagistas, a pregadores de outras Ordens, a políticos, à Inquisição que não desistia de o perseguir, chegando a processá-lo, metê-lo na prisão, e até o proibir de pregar.
A tudo resistiu o intrépido jesuíta, que foi missionário, diplomata e político ao serviço da Nação restaurada, pregador eminente, cultor da língua e da cultura portuguesas, nos seus mais altos níveis.
Como missionário, foi-o, primeiro na Bahia, dedicando-se especialmente a defender os escravos dos excessos dos senhores, a combater a própria ideia da escravização. Depois, no Maranhão, sendo aqui o combate mais radical, pois ao contrário do que sucedia com os negros que, em grande parte já vinham escravos de África, não era essa a situação dos índios, importando obstar, a todo o custo, que lhes fosse criado o mesmo estatuto. Por isso conheceu o ódio e as perseguições dos colonos, que atentaram contra a sua vida e o expulsaram do Maranhão.
Como diplomata e político fez-se embaixador para defender a restauração portuguesa e D. João IV, de 1642 a 1652, junto das cortes de França, Holanda, Itália, especialmente em Roma. Não foi alheio à diplomacia da guerra, do comércio, das alianças, advogando o regresso a Portugal dos judeus expulsos, emitindo pareceres, viajando incansavelmente.
Vivia sobriamente, recusando honrarias e missões dispensáveis, como o ser embaixador em Haia ou aceitar a mitra episcopal que lhe foi proposta.
Como pregador, agigantou-se por uma eloquência arrebatadora que conhecia os segredos da língua e da eloquência, de sólidos fundamentos teológicos, bíblicos e retóricos, abusando, não poucas vezes, do processo encantatório dos malabarismos barrocos, ao manipular os vários sentidos bíblicos, as alegorias, comparações, metáforas e os exempla da antiguidade clássica, multiplicando os silogismos, as antíteses, os paradoxos, as hipérboles, as apóstrofes, em suma, misturando, estrategicamente, o docere com o delectare, sobretudo quando um sopro de utopia era usado para arrebatar, ou amedrontar os ouvintes.
Tal foi o seu êxito que se tornou o pregador da capela real, da elite de Roma, sobretudo na Igreja de Santo António, pregador da rainha Cristina da Suécia, sendo o seu prestígio tal que, em Roma, foram ouvir o seu sermão do Carnaval de 167319 cardeais.
Homem contraditório, tanto se ocupava das mais variadas questões terrenas, das mais elevadas meditações teológicas, como das mais ousadas utopias do Quinto Império, em obras como a História do Futuro e a Clavis Prophetarum, dando crédito às profecias de Bandarra, às interpretações escatológicas ligadas à passagem dos cometas que afirmava augurarem calamidades públicas.
Como expressão desta multifacetada actividade e pensamento, deixou para a posteridade uma vasta obra escrita de sermões e cartas. A todos se dirigiu: aos poderosos, aos mais humildes, repreendendo, ameaçando, satirizando, tanto em Portugal como no Brasil e em diversos países europeus.
Com os seus escritos, a língua portuguesa tornou-se mais dúctil e plástica, e a nossa cultura, sobretudo na sua expressão literária, ganhou dimensões de universalidade. E tão cuidadoso foi que, no fim da vida, retocou e aprimorou os seus sermões, consciente também da sua missão de escritor.
Sermões estes que também pela forma se impõem, pois se modelaram pelos bons preceitos de Cícero e Quintiliano: depois da captatio benevolentiae dos ouvintes no exordium, dispunha-os para a matéria do sermão, ordenando-o depois segundo as boas regras da inventio (escolha da matéria adequada), da dispositio (ordenação de ideias, pensamentos ),da elocutio (arte e escolha das palavras), seguindo-se a realização artística, pelo que, em três partes se estrutura, na prática, essa execução: o exórdio, a narração-argumentação e a peroração, recapitulando ou reforçando as ideias.
Dessa riqueza basta lembrar alguns momentos que são referências inesquecíveis:
Os sermões do Rosário às confrarias de escravos, sobre Nossa Senhora Rosa Mística, do Advento, da Quaresma, de Santo António aos peixes…
Pelo grande impacte obtido, limitamo-nos a alguns exemplos mais emblemáticos:
No Sermão pelo bom sucesso das armas portuguesas, pregado na Bahia em 1640, usando para Deus o argumento ad absurdum: “Entregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhe as Índias, entregai-lhe as Hespanhas (que não são menos perigosas as consequências do Brasil perdido), entregai-lhe quanto temos e possuímos (como já lhe entregastes tanta parte); ponde em suas mãos o mundo; e a nós, aos portugueses e hespanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Magestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançaes de Vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais”
Do 27ºSermão do Rosário, pregado numa confraria de escravos:
“Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios: naquela, o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato deshumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias(…) Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como Deuses.”
E que dizer de sátiras humorísticas como no Sermão de Quaresma pregado como censura aos habitantes do Maranhão pelas falsidades a que recorreram. Imagina o pregador que, quando o diabo, condenado, caiu do céu, feito em bocados, “estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos fumosos, altivos e com arrogância graves (…) o peito caiu em Itália (…)o ventre caiu na Alemanha (…) os pés caíram em França (…) os braços, com as mãos e unhas crescidas, um caiu em Holanda e outro em Argel (…) E suposto que à Hespanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal, é a língua (…)E se as Letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal; que letra caberia ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M Maranhão, M murmurar, M motejar, M malsinar, M maldizer, M mexericar, e, sobre tudo M, mentir”.
Não acabaríamos se quiséssemos inventariar verdadeiras jóias lapidadas como as descrições-definições da guerra ,do estatuário, do polvo, do “non”…
(Fernando Cristóvam, Universidade Clássica de Lisboa, im "Agência Ecclesia")