O escritor Miguel Real, confesso admirador da figura e obra do Padre António Vieira, aponta-o como o primeiro grande pensador do Providencialismo Português, que defendia ter Portugal uma missão no mundo superior à de todas as outras nações.
"A sua importância está na teoria do Quinto Império, segundo a qual os portugueses aparecem como o segundo povo eleito - o primeiro teriam sido os judeus - para conduzir a humanidade a um certo estado de felicidade `paz, harmonia e abastança`, como ele dizia, sem guerra, sem ódio e sem pobreza", disse Miguel Real, em entrevista à agência Lusa, por ocasião do IV centenário do nascimento do jesuíta português, a 06 de Fevereiro de 1608.
Segundo Vieira, "a história de Portugal teria sido privilegiada para levar o mundo a esse degrau", sustentou o ficcionista e ensaísta, explicando que "ele estava a pensar principalmente nos missionários espalhados pelo império português que estavam a converter os índios da América Latina e os povos orientais ao Cristianismo".
Todos esses povos iriam - no seu entender - tornar-se cristãos e, "juntamente com a Europa, entrariam num reino de felicidade. Ele é um utopista nesse sentido, é um utopista do futuro como um futuro de abastança, paz e harmonia - muito parecido com o Agostinho da Silva", observou.
Mas além da questão utópica - insistiu - a grande importância de Vieira é que criou "uma linha cultural especificamente de Portugal, que é o Providencialismo, ou o Messianismo, como se quiser, não com base em Dom Sebastião - que era o normal, então - mas com base numa visão religiosa do Quinto Império.
Nessa perspectiva - defende Miguel Real -, a sua actualidade "é fortíssima, porque essa linha continua a existir hoje, foi recuperada por Fernando Pessoa, através da `Mensagem`, e foi continuada por pensadores como Agostinho da Silva e Dalila Pereira da Costa, uma grande pensadora portuguesa, do Porto, que tem 90 anos".
"Digamos que o Padre António Vieira é o patriarca desta visão - e isto é importante dizer, para as pessoas perceberem que ele não é simplesmente um orador, um pregador que quis ajudar as pessoas a viverem melhor -, ele é o fundador de uma linhagem que constitui o veio nervoso da cultura portuguesa e que não existe em qualquer outro país europeu", frisou.
Por outro lado, prosseguiu Miguel Real, o jesuíta que no século XVII atravessou sete vezes o oceano Atlântico, entre Portugal e o Brasil - onde passou boa parte dos seus 89 anos de vida (1608-1697), - foi "um pregador que denunciou todos os `aleijões`, como ele dizia, todas as malformações sociais".
"São três os grandes combates da vida dele no campo da denúncia social, o que não era absolutamente nada normal nos padres: o primeiro é a defesa dos negros escravos, que devem ser tratados como homens - não era acabar a escravatura, ele não defendia isso, aliás, ninguém no século XVII defendia isso em Portugal, mas defendia o seu tratamento humano", indicou.
O segundo combate que António Vieira travou foi a denúncia da escravização dos índios, uma atitude que - explicou o escritor - era comum a todos os padres da Companhia de Jesus, "mas nele era absolutamente vital, tendo chegado a ser expulso do Pará e do Maranhão pelos colonos, por defender que os índios são homens livres que não deviam trabalhar para os brancos, porque os brancos também não trabalhavam para os índios".
"A isto acresce que ele defendia também, tal como todos os jesuítas, a conservação dos dialectos dos índios e se nós hoje temos ainda o Tupi e o Guarani devemo-lo a homens como o Padre António Vieira", referiu.
A sua terceira denúncia social - que lhe valeu o início de uma perseguição pela Inquisição - foi a defesa dos judeus e dos cristãos-novos, "cem anos antes do Marquês de Pombal", salientou o ensaísta, acrescentando que "ele foi o primeiro a pedir o fim da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, que o Marquês decretaria um século depois".
"E defende isso tanto do ponto de vista doutrinário como até de um ponto de vista egoísta: ele pretende que os capitais judaicos que estão na Holanda venham para Portugal - porque a maior parte dos judeus tinha fugido de Portugal e de Espanha, eram os chamados judeus sefarditas - e promovam o comércio (...), porque onde houver comércio, há riqueza e os portugueses estavam paupérrimos, tinham acabado de se tornar novamente independentes de Espanha", assinalou.
Por último, a oratória: "Ele é o maior pregador religioso, até hoje, em Portugal, através dos Sermões", apontou Miguel Real.
De acordo com o escritor, que afirma ler Vieira "todos os dias", só nos últimos 50 anos se lhe tem dado em Portugal a devida importância, "a nível académico e religioso".
"Até ao final da Primeira República, que era formada por republicanos maçónicos, havia um preconceito contra os jesuítas, que tinham sido expulsos de Portugal e voltaram em 1925. Desde aí, começou um processo muito lento de atribuição de nova importância ao Padre António Vieira - até então, era considerado um bom orador mas um mau padre", resumiu.
"De há 50 anos para cá, começaram a ser editadas as obras proféticas dele e começou a ser recuperado como um grande orador e um grande pensador. Em 1997, nos 300 anos da morte dele, houve um congresso que contribuiu muito para a recuperação da sua obra", comentou.
"Hoje é considerado o maior orador de Portugal e o maior profeta utópico de Portugal. E é estudado na universidade, é estudado na escola secundária, que mais se pode pedir?", rematou.
(ANA NUNES CORDEIRO , Agência Lusa)