Assim acontece porque existem como entidades pregnantes, em relação às quais não há, nem pode haver, uma compreensão unívoca, definitiva e exclusiva. A fixidez e permanência de tais entidades, ao permitir que as tomemos como referentes, também nos habilita a mantê-las disponíveis para múltiplas dimensões de valor e de sentido de que são portadoras. Ora, o acto de delimitar nessa dimensão significativa plural o maior número possível de constituintes semânticos é tarefa que compete à arte da interpretação. E Vieira soube ser sempre um intérprete diligente.
O modo de interpretar por ele seguido obedece a regras e critérios muito antigos, compendiados outrora pelo dominicano Agostinho de Dácia (séc. XIII), em dístico que refere os quatro sentidos da exegese medieval, nestes termos: “A letra ensina os feitos, o que crês a alegoria, / A moral o que deves fazer, para onde te inclinas a anagogia.”1 Ficamos, pois, a saber que a Palavra de Deus, tal como está impressa nos livros do Velho e do Novo Testamento, além do sentido literal, dispõe igualmente dos sentidos alegórico, moral ou tropológico, anagógico ou místico.
Esta maneira de ler os textos sagrados apresenta, em Vieira, algumas aplicações surpreendentes. O que, desde os Padres da Igreja, foi sendo elaborado como método de interpretação bíblica serve ao pregador jesuíta para ler e interpretar os elementos da própria natureza e os acontecimentos da história. Além disso, junta à Revelação feita por Deus e guardada nos Livros Sagrados o ensino e interpelação que o mesmo Deus, na sua Providência, vai transmitindo aos homens, através de acontecimentos da mais variada espécie.
Baseado nestes princípios, Vieira tanto estende o procedimento interpretativo dos quatro sentidos às coisas da natureza e às peripécias da história profana, elevadas ambas ao estatuto de textos, como envolve na dinâmica da economia da salvação realidades do mundo natural e social que dela parecem distantes. Este alargamento do campo da interpretação obedece a um propósito claro e imperativo: persuadir ouvintes e leitores das consequências práticas da fé.
É preciso não perder de vista que Vieira se assume permanentemente como quem está em missão. Esta missão, mesmo nos episódios em que parece andar demasiado imiscuída em negócios humanos, subordina-se sempre ao desígnio supremo de quem sabe, como Vieira, que a sua vocação é servir a realização do Reino de Deus.
Compreende-se assim que a retórica tenha sido instrumento, nunca um fim, usado com inexcedível perícia, tendo em vista argumentar, aduzir provas, persuadir. Contemporâneo de Descartes (1596-1660) e de Baltasar Gracián (1584-1658), deles se distingue profundamente quanto ao método e quanto à arte de argumentar. Ao critério da evidência racional e dos juízos nele fundados, prefere Vieira as certezas da fé e da esperança a cuja luz interpreta os acontecimentos passados e presentes e neles descobre o sentido de coisas futuras, deste modo consagrando a história como verdadeiro sacramentum futuri (sinal sagrado do futuro).
Embora compartilhe com Gracián os processos do discurso engenhoso, dele diverge quanto à finalidade para a qual os utiliza. Mais do que exercício de estética, a subtileza dos conceitos e a sua organização discursiva pretende inculcar verdades e levá-las à prática na vida dos indivíduos e dos povos. Se os conceitos são em Gracián palavras belas que deleitam, em Vieira são, antes de mais, palavras que ensinam, transformam e querem operar a conversão.
Critica com desassombro, no sermão da Sexagésima (1655), o estilo culto e as agudezas a que se entregavam vários pregadores do seu tempo que mais lhe pareciam actores de comédia ou de farsa do que semeadores da palavra de Deus. Tenta, por outro lado, traçar as linhas mestras de uma arte de pregar em que as Escrituras não devem andar mal interpretadas nem Deus ser traído por aqueles mesmos que se apresentam e falam em seu nome.
Digamos que a retórica utilizada com mestria pelo pregador jesuíta quis servir, acima de tudo, o sentido pleno dos textos e da vida. Soube promovê-lo na dupla acepção que o sentido tem, isto é, como manifestação de inteligibilidade e como factor de orientação e direcção. Como manifestação de inteligibilidade, os textos, ao serem lidos e relidos, revelam-se manancial inesgotável de saber e de verdade; como factor de orientação e direcção, a história e a existência humana adquirem o rumo que as faz alinhar pela esperança na consumação final do Reino de Cristo.
(1) “Littera gesta docet, quid credas allegoria, / Moralis quid agas, quo tendas anagogia.” Cit. por Henri de Lubac, Exégèse Médiévale Les quatre sens de l’Écriture. I. Paris, Aubier, 1959, p. 23
(LUIS MACHADO DE ABREU, Universidade de Aveiro, na AGÊNCIA ECCLESIA)