sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

"Do Candomblé à Lusitânia Feliz"

Introdução da obra "No coração do Brasil - Seis cartas de viagem ao Padre António Vieira"

A escrita de Inês Pedrosa e os desenhos de João Queirós evocam de um modo extremamente atraente uma viagem que tão cedo não esqueceremos. É que neste percurso sob a invocação do Padre António Vieira, procurando entender a abertura de espírito, as vicissitudes, as incompreensões e tudo o mais que o orador sofreu, houve uma aura de mistério sempre presente que este livro procurou captar, de um modo algo inesperado, mas irresistível, que nos faz recordar em «flashback» alguns desses momentos inesperados. E tudo podia começar, emblematicamente, na Casa Branca, o terreiro nobre do candomblé de Salvador. Era o momento de celebrar Oxalufam, o primeiro dos orixás, o deus ancião, que simboliza a sabedoria. Na Igreja do Senhor do Bonfim, ao fim da tarde, Marcos, protegido por Oxalá, dera-nos já uma descrição entusiástica da hierarquia dos orixás. À hora marcada, quando entrámos na sala, apercebemo-nos do ambiente geral de mistério, circunspecção e expectativa. Em lugares de destaque estavam as mães-de-santo e os três tambores do “candomblé”, ao som dos quais se desenvolviam as danças rituais. A pouco e pouco, começou a sentir-se que o ritual da possessão ia acontecendo. Olhares em alvo, movimentos mecânicos, êxtase… Vem à memória o Benim e as cerimónias Vudu na fronteira do Togo relatados em “Atlântico: A Viagem e os Escravos” de Miguel real… O sincretismo religioso está bem evidente no terreiro, através de um pequeno altar com as imagens de Cristo crucificado e de santos cristãos. Enquanto as mulheres conduzem os acontecimentos, um homem sai do seu lugar e começa a dançar, sonâmbulo, ao ritmo dos tambores. Marcos estava nervoso e depois percebemos a razão: no auge da celebração, apareceu “incorporado”, inclinado, ausente, dançando, como o pai dos orixás – ele, ao lado de um jovem exuberante com largos movimentos e piruetas…

Fomos a Cachoeira, nas margens do rio Paraguaçu, com paragem em Santo Amaro da Purificação, cidade da cana-do-açúcar, da mandioca e do fumo – terra de Dona Canô, a mãe de Maria Bethânia e de Caetano Veloso. O Recôncavo Bahiano é a região mítica onde se nota a riqueza de outrora. Aqui pode ter-se iniciado o processo de independência do Brasil. Tudo se desenvolve, por isso, em torno da Praça da Aclamação – onde Damário Dacruz tem o centro cultural “Poiso da Palavra”, e aí ensina que as três grandes riquezas do futuro serão a água, a singularidade e a criatividade. passamos pela Irmandade da Boa Morte, feita pelas mulheres negras da sociedade matriarcal de Gueledé. Almoçamos principescamente na Fazenda de Santa Cruz e regressamos a Salvador, onde “visitamos” o Padre António Vieira, com Edivaldo Boaventura e a directora do Arquivo Público, marli Teixeira, na Quinta do tanque, lugar onde o jesuíta passou os últimos anos de vida, desde 1681, a cuidar da versão final dos Sermões, com o seu companheiro padre José Soares. Em 1688, foi nomeado Visitador da província do Brasil, depois de muitas incompreensões, regressando apenas em 1691, para escrever a “Clavis Prophetarum”.

Com que emoção, no rasto do Padre António Vieira, chegámos à Catedral Basílica da Bahia, a antiga Igreja do Colégio dos Jesuítas! Aí estão a cela onde viveu e a cadeira de jacarandá, que a tradição diz ter sido sua. Veio doente da Quinta do Tanque e morreu a 18 de Julho de 1697, á hora primeira. E então disse o padre André de barros: “no mesmo ponto e hora da noite em que expirou, acendeu o Céu uma nova estrela, ou facho luminoso, que foi visto sobre o Colégio”. E assevera a tradição que a Vieira teria sido dada a sepultura com o número 14, á direita do altar-mor. E foi com grande expectativa que presenciámos as diligências de Miguel Real para descobrir onde estaria esse número. Depois de arrastarmos um tapete, bandeiras e um montão de fios eléctricos, lá apareceu, perante o entusiasmo de todos, o 14 por que todos ansiávamos. Como se sabe, porém, o corpo do Padre foi retirado, no final do século XVIII, e nunca foi reencontrado. Ainda lembrámos os primeiros passos de Vieira: os primeiros estudos, o ingresso no noviciado, os primeiros contactos com os índios com quem aprendeu a língua geral, o tupi-guarani, idioma usado, com o latim, e o português vernáculo, como meio de comunicação dos jesuítas. Depois do Colégio, houve o deslumbramento da Igreja de S. Francisco, onde o barroco setecentista está em todo o seu esplendor. A talha dourada reveste as paredes e o forro da nave e deixa-nos esmagados pela profusão de motivos e pela riqueza luxuriante dos elementos. Ao lado, na Ordem terceira de S. Francisco, vimos os painéis de azulejos representativos de Lisboa por ocasião do casamento de D. José, cujo restauro tem tido o apoio da Fundação Ricardo Espírito Santo. Adriano Jordão acompanha-nos entusiasmado. Depois do Terreiro da Sé e do almoço na Cantina da Lua, fomos au Museu Afro-Brasileiro, onde as esculturas de Carybé nos deram a variedade e a versatilidade do mundo do candomblé. E se recordamos o Padre António Vieira, temos de lembrar Agostinho da Silva, que sonhou tudo de novo e organizou, na Universidade, o Centro de Estudos Afro-Orientais… Dali, é pequeno o salto ao Pelourinho, à Igreja de nossa Senhora do Rosário dos Pretos. na Fundação Casa de Jorge Amado, recordamos a tabela de correspondências dos orixás – Iemanjá (Virgem Maria); Obaluaê (S. Sebastião); Ogum (Santo António de Lisboa); Oxóssi (S. Jorge); Uxumaré (S. Bartolomeu); Iansã (Santa Bárbara). Subimos até ao convento do Carmo, passando pela escadaria da Igreja do Santíssimo Sacramento, onde Anselmo Duarte fez “O Pagador de promessas” (1962) e na Ordem Terceira do Carmo admiramos a imagem de Cristo morto feita em cedro, com rubis sangue de pombo incrustados, da autoria do Cabra, o escravo Francisco Xavier das Chagas.

Conta a lenda que, ainda na infância, o jovem António Vieira tinha dificuldades de aprendizagem que muito o angustiavam. Passando pela antiga Sé (que hoje já não existe), entrou no templo e deteve-se em oração perante a imagem de Nossa Senhora das Maravilhas. Então sentiu o famosíssimo “estalo”, que lhe despertou a vocação e os dotes de oratória. Estivemos, porém, quase para não ver a imagem de Nossa Senhora das Maravilhas. havia uma greve nos museus, que mantinha fechado o Museu de Arte Sacra no Convento de Santa Teresa de Ávila. Graças à gentileza do Reitor da Universidade, tivemos o privilégio de olhar a extraordinária imagem, tão ligada à memória de Vieira. É uma figura em madeira policromada e dourada do século XVI, com revestimento a prata do século XVII. Foi uma das raras peças que se salvaram da invasão dos holandeses. O museu é constituído por um repositório único dos melhores exemplos da arte religiosa dos séculos XVI a XVIII. É difícil encontrar no mundo um conjunto tão rico e diversificado. Na Igreja do Convento de Santa Teresa, antecâmara do museu, vemos o altar de prata que foi da antiga Sé, e na parte central do altar-mor está a campa do fundador da Universidade Estadual da Bahia, o Professor Edgrard Rego dos Santos, amigo da cultura portuguesa.

Na Rua dos Judeus ou do Bom Jesus, já no Recife, visitamos a primeira sinagoga das Américas. Aqui ensinou Isaac Aboab da Fonseca, vindo de Amesterdão, para acompanhar seiscentas famílias de sefarditas portugueses. Era o tempo de Maurício de Nassau (1637-1644). Em 1654, depois da Restauração Pernambucana, estes judeus de origem portuguesa tiveram, no entanto, de partir apressadamente para Nova Amesterdão, a actual Nova Iorque… Só Deus sabe o que o Padre António Vieira se bateu para que os judeus ficassem. O projecto de Zahal Zur Israel exigiu a remoção de centenas de toneladas de entulho, mas hoje o Centro Cultural Judaico de Pernambuco apela à memória em nome do entendimento. Do Recife histórico, fomos às origens, a Olinda. O fantasma de Vieira encontra-se aí com o arcebispo D. Hélder Câmara, nas sete colinas da cidade antiga. No altar-mor da igreja do Mosteiro de S. Bento, vemos a talha dourada com elementos exuberantes (grinaldas, flores, conchas e anhos), em que o barroco tardio anuncia o neoclássico. Adiante, o conjunto franciscano destaca-se – com a Igreja de Nossa Senhora das Neves e o Convento – e, mais acima, a Igreja do Salvador do Mundo, a catedral, onde está sepultado D. Hélder. Bem perto, está o Seminário de Olinda, local onde esteve Vieira, junto à casa mítica de Branca Dias, personagem querida de Miguel Real. E, regressados ao Recife, ouvimos ao jantar a voz timbrada de Augusto Lopes Cardoso, a recitar Manuel Bandeira: “Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais.” E logo: “Vou-me embora p’ra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei…”

No Gabinete Português de Leitura do Recife, encontrei velhos amigos há muito desaparecidos, e meu Avô, entre livros, memórias e lembranças, na biblioteca de Jordão Emerenciano. Leonardo Dantas acompanhou-nos na recordação da antiga cidade e da sua história. E visitamos a Capela Dourada, a dois passos do Gabinete, no convento dos irmãos terceiros de S. Francisco, com o altar de 1697, revestido a ouro, expressão suprema do barroco do Recife. A capacidade de nos surpreendermos não pára. O Recife é um porto de encontro de várias histórias, de vários tempos, de diferentes tradições. Como disse o padre Fernão Cardim, no final do século XVI: “Enfim em Pernambuco se acha mais vaidade do que em Lisboa”… E ao visitarmos o Instituto Ricardo Brennand, sentimos isso mesmo, não apenas perante a obra de Frans Post, mas pelo encontro do Norte e do Sul, da predestinação puritana e da força vital da natureza pródiga…
S. Luís do Maranhão! Partimos para a cidade de Alcântara, no outro lado da baía de São Marcos. é a recordação de um tempo que não volta. E Josué Montello ajuda-nos na decifração da cidade fantasma: “Tudo quieto. Não ouço rumor de vida à minha volta. Nem sequer uma revoada de andorinhas estala o seu alarido feliz por cima dos telhados escuros.” Mas recuemos. A cidade foi rica e opulenta. Fundada em 1648, foi centro da actividade económica da produção da cana-de-açúcar e do algodão até á abolição da escravatura. É um conjunto arquitectónico dos séculos XVII e XVIII, paradoxalmente preservado, entre ruínas e memórias, pelo abandono dos seus habitantes. O catamarã que nos leva a Alcântara sob um sol intenso, numa viagem de hora e meia, enfrenta o mar revolto e o vento forte. Danilo recorda-nos o povoamento tupinambá, fundado por índios tapuias, que os tupis expulsaram. A vila desenvolveu-se porque se tornou ponto obrigatório nas ligações entre São Luís e o Pará, e porque serviu de base ás forças portuguesas que expulsaram os holandeses. Depois de subirmos desde o Porto do Jacaré, deparamos na Praça da Matriz com as ruínas da Igreja de S. Matias. O pelourinho, com as armas de Portugal, esteve na Rua da Bela Vista, depois designada como Rua da Amargura. E não se sabe se esta designação vem dos castigos infligidos aos escravos, se do facto de ser daqui que se faziam as despedidas dos que partiam para o reino.


S. Matias está em ruínas e conta-se que um novo-rico teria mandado demolir parte da torre para poder ter melhor vista do seu sobrado. “Por estas calçadas compridas, ao pé dos sobrados que rodeiam o largo, retiniram esporas de cavaleiros, tacões de botas de soldados e sapatões ferrados de graves ouvidores. Estas pedras foram pisadas por sinhás-donas e sinhazinhas. Nelas também estalou o pleque-pleque das sandálias de seda das negras de cintura fina, peito cheio e bunda redonda, que não se deitavam com brancos, negros e mulatos de outro lugar” (J. Montello). Quando acabou a escravatura, as técnicas de exploração mudaram, a Guerra da Secessão teve o seu fim, voltou a concorrência do algodão americano e a cidade começou a ser abandonada e depois saqueada. Os antigos senhores foram substituídos pelos filhos e netos dos escravos. Além da restaurada Igreja de Nossa Senhora do Carmo, encontramos os dois palácios inacabados dos barões de Mearim e Pindaré. São ruínas da expectativa de que o imperador D. Pedro II viesse. Mas não veio. São casas que simbolizam o drama de Alcântara. Na rua Grande, olhamos o longe da baía de São Marcos e descemos a ladeira do Jacaré, lembrando ainda Montello em “Noite Sobre Alcântara”. E ao chegar a S. Luís, com um mar terrível, fomos à Capela do Senhor dos Navegantes ouvir o Sermão de Santo António aos Peixes e descerrar a homenagem do CNC ao Imperador da língua portuguesa…

Belém do Pará surpreende-nos pela presença de Portugal! E é grande o orgulho em mostrar a recuperação patrimonial e histórica da “Feliz Lusitânia”, graças á decisão e à sensibilidade do arquitecto Paulo Chaves. A história da borracha confunde-se com o apogeu e a decadência do Pará. O teatro da paz foi erguido à imagem e semelhança do Scala de Milão, financiado pelos senhores da borracha. Se houvesse dúvidas, o mercado de Ver-o-Peso demonstra a grandeza antiga. O nome vem do entreposto fiscal. É um mercado à sombra tutelar de uma estrutura de ferro airosa e austera, trazida da Inglaterra no século XIX, onde se compra e vende de tudo, peixe, comida típica, artesanato, mas também unguentos, mezinhas e ervas… Centenas de urubus vieram para ajudar á limpeza e preparar o novo dia. Belém é a cidade das mangueiras, que bordejam as avenidas da cidade, mas hoje o fruto mais desejado é o açaí. A baía de Guajará é amena e luxuriante. Sentem-se o Amazonas e os rios Tocantins, Pará e Guamá, que aqui desaguam. E não se esqueça a portuguesíssima toponímia imposta no tempo de Sebastião José – Santarém, Alter do Chão, Alenquer, Porto de Mós, Salvaterra, Sintra, Barcarena… Enquanto almoçávamos na Estação das Docas, no restaurante Lá em Casa, recordámos os bandeirantes que romperam o meridiano de Tordesilhas e construíram a fantástica Amazónia. O Padre António Vieira, nosso cicerone e nosso companheiro, teria sonhado com esta capital para o Quinto Império. Mas houve a forte animosidade dos senhores da terra – e teve de partir. À vista estão a Sé Catedral, a Igreja de Santo Alexandre, o Museu de Arte Sacra e a Casa das Onze Janelas. Da Sé Catedral sai todos os anos, no segundo domingo de Outubro, para a Basílica de Nossa Senhora da Nazaré a procissão do Círio, em que participam dois milhões de pessoas, em homenagem á Virgem aparecida no nosso “Sítio da Nazaré”. O Museu de Arte Sacra, anexo à Igreja de Santo Alexandre, alberga um acervo de grande beleza e qualidade, servido pelas mais modernas técnicas da museologia, o que permite aos retábulos de cedro vermelho ganharem vida. O barroco jesuítico concilia austeridade e audácia. Os temas religiosos são servidos pela decoração com motivos próprios do Equador, o que permitia aos artífices a aprendizagem religiosa a partir da matéria e do “espírito” do lugar e da comunidade. O clima equatorial não nos faz perder a sensação de que estamos num dos pontos do Brasil mais próximos do reino, numa rota cheia de espíritos.

Guilherme d'Oliveira Martins
Publicado em 29.01.2008