quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

"O Imperador da Política"

O padre Antônio Vieira, cujo quarto centenário de nascimento se comemora no mês de fevereiro, foi imperador de vários reinos. “Imperador da língua portuguesa”, definiu-o o poeta Fernando Pessoa; “Imperador do púlpito”, disse dele o escritor Joaci Pereira Furtado, organizador de sua obra. A estes epítetos pode-se adicionar “imperador da política”, e, neste particular, sem prejuízo da sua colossal figura de evangelista, pregador e pensador, foi como homem de Estado que se agigantou além do apertado figurino português do século XVII.

Não exerceu o poder propriamente dito, como seu colega de batina cardeal de Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII e homem mais poderoso da França naquele período. Foi apenas conselheiro do rei português dom João IV e de sua viúva, a rainha-regente Luísa de Gusmão. O governo e a sociedade portugueses, tolhidos pelo maior mal que se abateu sobre Portugal, a Inquisição, não dispunha das condições objetivas para, depois da Restauração ocorrida em 1640, quando o país se libertou do domínio da Espanha, aplicar as políticas que Vieira formulou para recuperar a glória lusa da “grandeza antiga”.

Sua visão de estadista alcançava mais longe que a miopia dos irmãos religiosos, especialmente os dominicanos que ministravam as trevas da Inquisição. Defendeu a reabilitação dos judeus, para livrar os cristãos-novos do sinal infamante, com o objetivo de atrair a Portugal o capital judaico que já migrara para os Países Baixos (hoje Bélgica e Holanda) e ajudava a fazer daquele país a grande potência comercial da Europa. Foi dele a idéia da criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649), para concorrer com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (1621), patrocinadora da invasão do Nordeste de 1624 a 1654, período em que os holandeses controlaram a produção de açúcar e o tráfico de escravos. Jesuíta, “fiel servo de Deus”, Vieira colocava os interesses de Estado acima do obscurantismo religioso que atrasava Portugal.

A astúcia geopolítica do padre-estadista se fez presente quando sugeriu a dom João IV uma bandeira que demarcasse os limites do Brasil com as terras da Espanha. Não há notícia de que tenha se oposto ao nome que o rei designou para a tarefa, o excomungado capitão Raposo Tavares, o maior inimigo dos jesuítas, destruidor das reduções espanholas da Companhia de Jesus no que é hoje o Sul do Brasil. Vieira é autor de um dos poucos relatos acerca desta bandeira epopéica, que de 1648 a 1651 palmilhou dez mil quilômetros, do Tietê à foz do Amazonas, e praticamente delineou a fronteira atual do País. É visível a ambivalência do texto. Mesmo incriminando Raposo Tavares (“o matador”), sem citar-lhe o nome, compara os bandeirantes aos gregos míticos “argonautas”, e qualifica a empreitada como “uma das mais notáveis que até hoje se tem feito no mundo”.

Pesou em sua biografia a capitulação diante dos holandeses. Autor de um eloqüente Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, em 1640, concordaria com a decisão de dom João IV de entregar o Nordeste ao inimigo. Considerava que a guerra era cara a Holanda, um adversário difícil de vencer, e que Portugal poderia reaver as terras “quando nos virmos em melhor fortuna”, antes compensando a perda de território com a anexação da Argentina. Como não é raro na História, os soldados surpreenderam os generais. Os guerrilheiros sertanejos, que na exaltação do próprio Vieira “tinham por casa o céu e a terra por cama” e “se sustentavam só de farinha de guerra, sem mais que uma pouca de água”, impuseram uma derrota militar humilhante ao exército flamengo.

Neste episódio, e em tantos outros, a bússola política de Vieira apontava para um só objetivo estratégico, a consolidação do trono português depois dos sessenta anos de domínio espanhol, iniciado após a morte de um jovem rei que não tinha sucessor, dom Sebastião. Desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, forjou o mito do retorno triunfal – o sebastianismo – de que voltaria para realizar por vontade de Deus um grande império universal sob domínio português. Quando dom João IV assumiu o trono, voltaram a lume as profecias de um sapateiro de Trancoso, Antônio Gonçalo Bandarra, que no século anterior vaticinara a volta do rei exatamente em 1640: “O seu nome é dom João”. Para a corte, dom João IV era dom Sebastião redivivo.

Quando dom João morreu, em 1656, Vieira abençoou Bandarra, comparando-o aos profetas bíblicos Daniel e Isaías, e pregando que desta vez seria dom João que voltaria à vida e ao poder. Chamaram-no de louco e herege – a Inquisição lhe impôs dois anos de custódia e seis meses de reclusão. Em sua sagacidade política, queria fortalecer a dinastia dos Braganças com o movimento do sebastianismo que animara a luta da Restauração, e unir o país em torno do projeto do grande império.


( Por ALDO REBELO, deputado federal pelo PCdoB-SP. Foi presidente da Câmara dos Deputados e ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República)

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