Maior autor de língua portuguesa do século XVII e um dos mais celebrados oradores sacros de todos os tempos, o Padre Antônio Vieira atingiu tal nível de erudição e prestígio, que deslumbrou o mundo culto de seu tempo, com seus vibrantes, oportunos e vigorosos sermões, proferidos perante reis e príncipes da Igreja, crentes e homens de cultura, e mesmo modestos e agnósticos cidadãos, que antecipadamente lotavam os templos onde sabiam que Vieira se iria apresentar. Tendo recebido toda a sua instrução nos Colégios Jesuitas do Salvador da Baía e de Olinda, Vieira só atingiu as culminâncias do saber e da erudição, mercê de sua insaciável curiosidade intelectual, servida por um talento oratório talvez único, que colocou a serviço de seu sábio e brilhante ecletismo, produzindo sermões de conteúdo profundo e forma irretocável, que a todos encantavam, convenciam e convertiam.
Na realidade, a oratória e a obra de Vieira impunham-se e impõem-se pela elevação e beleza de sua estilística, pela clareza e firmeza de suas construções retóricas e pelo humanismo e oportunidade de suas intervenções político-sociais, moralistas e moralizantes, em que tanto atacava a corrupção como defendia os oprimidos; nas quais ora pregava em favor dos índios ora contra os abusos dos senhores que os escravizavam; onde frequentemente condenava o luxo e a opulência dos poderosos para cotejá-los com a miséria e penúria dos miseráveis que produziam a sua riqueza, entre os quais frequentemente vivia, ensinava e pregava, com eles se identificando - não fosse ele próprio neto de uma escrava africana - e ainda com eles se comunicando em suas próprias línguas, pois falava 7 (sete) dialetos indígenas, nos quais redigia os catecismos de que se utilizava para a conversão e alfabetização de seus protegidos.
Quando iniciamos o estudo da vasta obra do Padre Antônio Vieira, logo sobressaem as múltiplas facetas deste brilhante e ainda mal conhecido português do Brasil, onde avulta e brilha o halo do pregador sacro sem igual, o texto do primoroso escritor, o sentimento do humanista e homem de ação sem paralelo, a um tempo defensor de índios e de negros, apologista da justiça e da liberdade, a par de uma firme postura contra os abusos da Inquisição, sem que nos possamos esquecer do "cientista social" e político desassombrado e atuante, ou do diplomata de grandes e nobres causas e batalhas, que nas cortes da Europa defendia com garra e brilho os interesses de sua e nossa Pátria. E, depois de tanto se ter servido do Verbo, da Dialética e da Retórica, não é de estranhar que a moderna língua portuguesa - saída do gênio e da pena de Luís de Camões - tivesse sido lapidada e consolidada pela fala, pela escrita - enfim pela voz - de Antônio Vieira, que, desse modo, conseguiu elevar a prosa em língua portuguesa à sua mais pura, elevada e brilhante expressão, à semelhança do que um século antes Camões tinha feito por meio de sua poética.
Estudar Vieira é ter que abordar os mais complexos problemas da Vida, para o que necessário se torna mergulhar fundo na Existência e na Essência do Ser Humano, em busca da Alma, do Espírito e dos mistérios que o Misticismo vem perseguindo ao longo dos milênios; na realidade, quando tentamos analisar criticamente a profundidade de temas e conceitos expressos em seus sermões, constatamos que - através deles - Vieira nos coloca em contato com os mais sérios problemas e fenômenos pessoais, sociais e existenciais de todos os seres, tempos e lugares, pois são de ontem, de hoje e de sempre tanto a justiça quanto a liberdade, tanto a ética como a fraternidade, tanto a paz como a igauldade perante a lei, tanto os desequilíbrios da Alma quanto os mistérios do Espírito, que devem constituir o objetyivo primeiro e último de todo o estudo sério e profundo, e a preocupação maior de todo o estudante, qualquer que seja a sua especialização acadêmica, a sua ideologia política ou até mesmo a sua crença religiosa. Essa talvez tenha sido a grande lição de Mestre Vieira, que nos deixou uma riquíssima obra literária do mais puro vernáculo, profunda e eclética, de grande beleza estética e de inigualável centelha ética, cujo estudo forma e engrandece, educa e esclarece, instrui e enobrece, eleva e enriquece, ao mesmo tempo que a sua leitura interessada e atenta encanta e delicia o estudante e o iniciado, o leigo e o formado, o sábio e o erudito.
Antônio Vieira - O Grande - foi realmente um intelectual eclético e um homem de ação polivalente, porquanto encarnou várias e ricas personagens no decorrer de sua atribulada e longa existência, tendo protagonizado, na vida real e com perfeição, as variadas e complexas funções de professor e pregador, de escritor e missionário, de diplomata e conselheiro real, de negociador e filósofo, tendo a todas elas emprestado o brilho de sua inteligência, o vigor de sua palavra, a integridade de seu carácter, o rigor de sua argumentação, a retidão de sua personalidade e o gênio de sua intuição, augustos atributos que - de tão raros em um só homem - o tornaram alvo dos mais repulsivos sentimentos de todos quantos, por inveja, despeito ou interesses feridos, se sentiam ameaçados, prejudicados e ou humilhados pela excelência de suas virtudes, pela grandeza de sua Alma ou pelo nobreza de seu proceder.
Muito naturalmente, o penetrante, eficaz, permanente e convincente instrumento de ação e comunicação de Vieira foi a linguagem falada - mais que a escrita - sempre apaixonada e eloquente, enérgica e convincente, inteligível e abrangente, certeira e inteligente, oportuna e comovente, com a qual cumpriu um longo e brilhante apostolado, sempre exercido desinteressadamente, quer se tratasse dos índios da Baía ou do Grão Pará e Maranhão, dos colonos de São Luís ou dos defensores da cidade do Salvador, da nobreza lisboeta ou dos bispos e cardeais romanos, da corte de D. João IV ou da cúpula do Vaticano. E nem mesmo se furtou a um brilhante tête à tête com o prelado Jerônimo Cataneo, quando, no palácio romano da Raínha Cristina da Suécia e na sua presença, foi desafiado a defender Heráclito, que sempre chorava, em contraposição a Cataneo, defendendo Demôcrito, que sempre ria. E de tal defesa nasceu a mais brilhante pequena-grande obra prima do nosso Príncipe dos Oradores Sacros, conhecida como "O Pranto e o Riso".
Senhor de insuperável gênio verbal, servido por um raciocínio dedutivo de lógica irretocável, a que devemos acrescentar uma dialética demolidora e construções retóricas empolgantes e convincentes, o talentoso Vieira manipulava a riqueza vocabular da nossa língua portuguesa com insuperável maestria, o que lhe permitiu atingir e exercer a sua inigualável expressão oral sem jamais sequer macular a pureza vernacular do idioma de Camões. Dele, dizia Fidelino de Figueiredo: "Vieira é um modelo de expressão, de relevo enérgico e de eloquência. Maravilha-nos que ele conseguisse tais efeitos, com um léxico tão reduzido, e uma sintaxe tão correntia...um inimitável mestre na arte de combinar valores comuns com efeitos novos e relevantes. Esse dom nasceu com ele e com ele morreu". Assim como Camões foi o grande artista que, à superior beleza estética de sua poética adicionou uma linguagem vibrante e arrebatadora, que tornaram "Os Lusíadas" um marco na história da poesia épica mundial, também - um século mais tarde - aos sermões de Vieira se ficou devendo a consagração definitiva do idioma luso, mercê da sua "lapidação" pela arte de bem arquitetar, e melhor falar e dizer do nosso talentoso jesuita.
Em Vieira encanta, comove e embriaga a beleza estética de sua parenática - enquanto arte de pregar ou eloquência oratória sacra - porquanto, nenhum outro pregador da Idade Moderna tão belos sermões pregou e disse, tão brilhante e convincente foi, tanto ousou e ou tão longe chegou na beleza sermonária, mas, acima de tudo, tantas paixões extravasou e despertou, como o amado Paiaçu (Padre ou Pai Grande) dos índios do Grão Pará e Maranhão, aos quais também muito amou, e ainda mais defendeu e protegeu contra os abusos, injustiças e violências dos esclavagistas da época, os quais - tudo tentando e nada podendo fazer contra a força de sua palavra - acabaram por expulsá-lo e expatriá-lo para Portugal, bem como aos seus auxiliares diretos. E foi só recorrendo a esse ato de força e violência, que os senhores de São Luís do Maranhão conseguiram ver-se livres do defensor da liberdade dos índios seus escravos, da moralidade da sociedade local, das injustiças do Poder.
Da grandiosa, vasta, rica e erudita obra de Antônio Vieira, sobressaem naturalmente "Os Sermões", os quais - por serem empolgantes e comoventes peças de oratória acentuadamente barrocas - resplandecem como brilhantes, entre todas quantas conhecemos do século XVII. Neles - onde metáforas e alegorias são muitas vezes magistralmente incluídas, de modo a enriquecer e ilustrar imagens e conceitos - tais artifícios de linguagem oratorial, de incisivo e elegante estilo, causavam imediato e profundo impacto no auditório, revelando-se de clarividente oportunidade, obra de aguda sensibilidade, e prova da enciclopédica erudição de Vieira, a que o esfuziante brilho da sua palavra dava o toque final de arrebatamento que a todos os seus ouvintes envolvia. Para tanto, servia-se o nosso orador das passagens e revelações dos Sagrados Livros, devidamente embasados em exemplos ilustrativos de seu dia-a-dia, a tornar mais concretas as suas prédicas, mais realistas as suas imagens, mais convincentes os seus relatos.
Entre os cerca de 220 (duzentos e vinte) sermões que proferiu e nos deixou, contam-se 30 alusivos ao Rosário, 25 relativos à Quaresma, 18 sobre São Francisco Xavier (o grande jesuita apóstolo das Índias), 14 acerca da Eucaristia, 9 invocando o nosso Santo Antônio de Lisboa, oito abordando o lava-pés, 7 reportando o Advento, 4 referenciando São Roque, e 3 descrevendo a Quarta Feira de Cinzas, além de outros sobre a Páscoa, o Espírito Santo, o Santíssimo Sacramento, o Pentecostes, Ação de Graças, e Misericórdias, uns mais outros menos conhecidos, mas todos belas, magistrais e eloquentes peças da mais fina oratória de todos os tempos. E, para não passarmos em brancas núvens por tantas e tão instrutivas peças, transcrevemos uma passagem de elevada concepção artística, onde Vieira arquiteta - de forma sublime - a ideia da obra missionária, cotejando-a com a arte do estatuário, em seu sermão ao Espírito Santo:
" Vêde o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas - tosca, bruta, dura, informe - e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homemj, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, talvez um santo que se pode pôr no altar. O mesmo será se, à vossa industria, não faltar a graça Divina.".
Já aqui fizemos referência à "pequena-grande obra prima" do Padre Antônio Vieira que é "O Pranto e o Riso", apresentada na Academia sediada no palácio da Rainha Cristina da Suécia, que então residia em Roma, em 1674, quando o insigne jesuita aceitou defender o pranto ou choro de Heráclito (que sempre chorava), contra o riso de Demócrito (que sempre ria). Eis algumas passagens daquele que será o menor, mas, talvez um dos mais brilhantes pronunciamentos do nosso pregador: "...Entrando, pois, na questão de se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri - como ria Demócrito - ou quem chora - como chorava Heráclito - eu, para defender a parte do pranto, como sou obrigado, confessarei uma coisa e direi outra. Confesso que a primeira propriedade do racional é o risível; e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o uso da razão.
"Demócrito ria sempre; logo nunca ria; Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo...segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não havia matéria que motivasse o riso...não pode haver riso que se não origine de causa que agrade...
"Heráclito chorava, mas por outro modo; há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso; chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de dor maior; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva; a dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela, as seca; dor que pode sair pelos olhos não é grande dor, por isso não chorava Demócrito; e como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre ria...".
Nasceu António Vieira em Lisboa, a 6 de fevereiro de 1608, sendo filho de Maria d`Azevedo e Christovam Vieira Ravasco, tendo sido batizado a 15 do mesmo mês na Catedral da Sé; no final de 1615 seguiu para a Baía com sua família, tendo-se salvo de um quase naufrágio nos baixios da Paraíba em 20 de Janeiro de 1616. Uma vez na capital, logo iniciou os estudos no colégio jesuita de São Salvador (que depois deu o nome à cidade), até que - em março de 1623, aos 15 anos de idade - quando ouvia um sermão do padre Manoel do Carmo, parece ter sentifo forte apelo ou inclinaação para a vida religiosa, que seguiu, apesar da oposição de seus pais. Saiu de casa, entrou no colégio (na época sinônimo de estudos superiores), fez dois anos de noviciado e, finalmente, professou em 6 de Maio de 1625. Foi nessa altura que - apenas com 17 anos de idade, foi encarregado de redigir a carta annua ou relatório em latim, enviado anualmente a Roma, para a sede da Companhia de Jesus, fundada um século antes por Santo Ignacio de Loyola. Logo no ano seguinte seguiu para o Colégio de Olinda como professor de retórica. Ordenado em 1635, logo iniciou suas pregações, que revelariam um dos maiores gênios da oratória de todos os tempos, como Santo Antônio de Lisboa fora 4 séculos antes. E, depois de uma atribulada existência - que várias vezes o levou a Portugal, de onde partiu a cumprir missões diplomáticas por vários países da Europa - faleceu na Baía a18 de Julho de 1697, com quase 90 anos de idade.
PS-Os trabalhos do Prof. Antônio Abreu Freire - que no comando de um veleiro está percorrendo os caminhos de Vieira - inserem-se nas comemorações do 4º Centenário de nascimento do Padre Antônio Vieira.
(por José Verdasca, escritor português)
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
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