Há pelo menos duas razões urgentes para conhecer a obra do padre Antônio Vieira e, em particular, seus sermões, que são a melhor parte dela. A primeira é seu domínio extraordinário da língua portuguesa. Fernando Pessoa o celebrava como um "gênio de perfeição lingüística". Deu o nome do jesuíta a um dos "avisos" de "Mensagem": "O céu strella o azul e tem grandeza./ Este, que teve a fama e à glória tem,/ Imperador da língua portuguesa,/ Foi-nos um céu tambem".
A frase mais célebre de Pessoa ("Minha pátria é a língua portuguesa") fecha um excurso sobre o impacto ao lê-lo pela primeira vez: "Fui lendo, até o fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das idéias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais -tudo isso me toldou de instinto como grande emoção política. E, disse, chorei: hoje relembrando, ainda choro. Não é a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica".
E, para que tais declarações não passem apenas por idiossincrasia, copio aqui um dedo do "Sermão do Espírito Santo", de 1657: "Dizei-me: qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça ou a arte? Pois o que faz a natureza e a arte, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus acompanhada da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem, primeiro membro a membro e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama: e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar".
O trecho é colorido, copioso e próprio, preciso e rigoroso. Cada uma das várias ações ali relacionadas vem descrita por um verbo talhado para seu objeto. Ocorre, de um golpe, abundância e economia: um jogo extremo com a língua que Vieira faz, não uma vez ou outra, mas o tempo todo.
Política e história
A segunda razão de interesse pela obra do jesuíta é o repertório dos temas históricos e políticos. Vieira é dos que não acham modo de falar de Deus sem provar um bocado do mundo, tão estragado pelos pecados da ocasião quanto sacramentado pela graça divina. Todo texto de Vieira é político, como bem exige a concepção jesuítica de caridade cristã. Eis aí: não são só "temas". Quando Vieira prega, quer agir.
Nunca há diletantismo ou beletrismo no espetáculo dos sermões, mas atuação política direta. O monsieur de Guénégaud, embaixador da França em Lisboa, em 1675, escreveu a Luís 14, dando conta da situação dos negócios na corte portuguesa: "O Padre Vieira é conhecido em Portugal, e pela rainha, como um homem perigoso e hábil, que, após ter gozado de prestígio grande nos negócios do falecido rei, não pode disfarçar a irritação por ter sido excluído deste ministério... Retornou para cá trazendo uma inquietude reforçada por muita irritação e ambição, que fê-lo um dos homens mais perigosos do mundo".
Aí está o trunfo da obra de Vieira: a plasticidade de sua palavra nunca é inofensiva. Quanto mais perfeita a "lábia", maior o risco insinuado do efeito de suas palavras. No período em que escreve o embaixador, Vieira retornava a Lisboa, após cinco anos em Roma, onde fora buscar isenção em relação ao tribunal português da Inquisição. Enquanto esperava ser admitido como valido de dom Pedro, como o fora de dom João 4º, seu pai, cada palavra sua vinha associada a "maquinações" -como está rotulado num dos códices sobre ele. Rumores davam conta, por exemplo, de que Vieira entabulava negociações com Castela a fim de obter uma possível reunificação das coroas da península e a transferência da família real portuguesa para o Brasil.
O mais intrigante e sedutor na leitura de Vieira está nisto: descobrir o ponto em que a sua palavra se ajusta com o poder que diz. Como se o discurso fosse a atualização de uma soberania efetiva, não importa que fosse ele apenas um jesuíta dos quintos do Brasil, aspirante a privado do rei na corte provinciana de Portugal -não tendo, portanto, nada de seu. Mas, ainda nada tendo, conquistar apenas o império da língua que lhe reconheceu Pessoa seguramente não lhe bastaria: junto deveria vir o mundo reduzido a seu rei e a sua igreja.
(ALCIR PÉCORA, professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp), no ESTADO DE S. PAULO 3.2.08).