A Academia das Ciências de Lisboa assinalou o quarto centenário do nascimento do padre António Vieira, sendo orador o jornalista açoriano António Valdemar que destacou "o génio que engrandeceu a língua na qual dizemos uns aos outros o que nos une e o que nos distingue; realidade quotidiana e património intemporal de portugueses, brasileiros, africanos, orientais, pátria de pátrias, instrumento de cultura e civilização com íntimas cumplicidades de afecto e fortes vínculos de história".
Para António Valdemar, que é também sócio efectivo da Classe de Letras da Academia que promove a iniciativa, o assinalar da efeméride tem "o mérito de nos aproximar de uma figura que viveu e marcou o seu tempo, projectando-se para os outros tempos e constituindo uma referência emblemática da língua falada hoje por mais de 200 milhões de habitantes de cinco continentes", pois "o grande desígnio de uma política da lusofonía tem raízes no pensamento de Vieira ao defender, a abertura da língua à vida, ao tempo e ao mundo".
O Jornalista traça o perfil e o percurso do homem que viveu há 400 anos e que ainda hoje permanece vivo nos compêndios escolares, sendo no entanto "quase um ignorado na sua cidade" de nascimento que é Lisboa, onde tem "o nome inscrito na toponímia, mas numa rua vulgar, igual a tantas e tantas outras". Esse esquecimento é tanto maior, de acordo com as palavras de António Valdemar, porque "nunca se ergueu um monumento à sua memória. Até agora, no Panteão Nacional, não há um cenotáfio que o recorde. Apenas Columbano o integrou num dos retratos colectivos que se encontram nos Paços Perdidos, do Palácio de São Bento. Esta é uma das raras homenagens que recebeu. A outra foi a de Fernando Pessoa ao inclui-lo na Mensagem e exaltando – o como o imperador da língua portuguesa e dizendo que ele «foi-nos um céu também»"."Missionário, diplomata, político e génio literário, Vieira foi tudo isto, lembra o jornalista, para acrescentar que vieira "ocupou quase por inteiro o século XVII – umas vezes, com os maiores privilégios e distinções, pelos êxitos alcançados, dentro e fora de Portugal; outras, marginalizado, suportando o travo da derrota, a crueldade e o silencio do ostracismo".
Valdemar aponta também o papel de Vieira na história do país, uma vez que "exerceu influência assinalável no Portugal da Restauração. Pregador e conselheiro de D. João IV, realizou missões diplomáticas a Paris e Haia, à procura de alianças e fundos para a Guerra contra Castela. Teve encontros com as comunidades judaicas de Ruão e Amesterdão. Propôs a D João IV a admissão de mercadores judeus e a abolição da discriminação dos cristãos novos, com o objectivo de atrair os seus investimentos. Depois de uma polémica com os colonos no Brasil, fez aprovar legislação contra a escravatura dos índios. Enfrentou conflitos com a Inquisição, esteve preso nos cárceres do Santo Oficio mas conseguiu do Papa a suspensão dos autos de fé”. António Valdemar recorda que Vieira teve, ainda, um contencioso no seio da própria Companhia de Jesus. "Para muitos causa surpresa e atribui-se ao seu temperamento arrojado e heterodoxo. Contudo, essa heterodoxia, talvez faça parte e seja uma das virtualidades da actuação e funcionamento da Companhia: ocupar a Cidade dos Homens a fim de atingir a Cidade de Deus. Mais de 300 anos depois de Vieira, Theilhard de Chardin, é outro exemplo desta dissidência controlada".
Embora existem diferenças inevitáveis, entre ambos, não há, no entanto, dissemelhanças irredutíveis no essencial da atitude, do comportamento e até da doutrina. Partindo de uma experiência temporal, Vieira – diz Valdemar - formula uma visão simbólica e alegórica para o domínio político - espiritual , enquanto Chardin, projectando as suas concepções cientificas, procedeu a uma teorização teológico - filosófica do universo. Tanto um como outro, acrescenta, "mantiveram-se sempre na Companhia e não se desviaram das suas finalidades, apesar de sofrerem admoestações, reprimendas e, até, a proscrição e o ostracismo. Para Vieira foi a utopia do Quinto Império, para Chardin a Noosfera, o que ascende e converge para um Cristo Cósmico, ponto ómega da idade final do espírito. Ambos foram universalistas e ambos se quiseram profetas e historiadores do futuro".
E que dizer do génio literário de Vieira?, pergunta Valdemar, cuja resposta é simples: "Como orador e epistológrafo não tem paralelo. Seguiu os modelos da Antiguidade Clássica, do pensamento e da literatura medievais, aprofundou os prosadores e poetas quinhentistas; as bases doutrinais do Concílio de Trento e outras directrizes da Contra Reforma. Mas é sempre ele próprio".
Entre os Sermões e as Cartas há diferenças, mas o autor é sempre o mesmo, ficando o registo de que "cada sermão de Vieira é uma «partitura linguística» e constituía um acontecimento religioso, político e mundano, que esgotava a lotação da capela real, das igrejas e conventos de Lisboa e do País e no Brasil.António Valdemar não se esquece de referir que o tema abordado por Vieira "está, sempre, subordinado a uma efeméride religiosa, pronunciando-se acerca das hipocrisias do mundo, do amor e da morte, da felicidade e da infelicidade, da modéstia e da vaidade, da corrupção e do roubo, dos impostos abusivos, e das riquezas ilegítimas, das fraquezas e grandezas da condição humana".
Contra opiniões dominantes – vinca Valdemar - defendeu a igualdade dos povos e das raças. Destaca – se, já o assinalámos, a posição assumida em relação aos judeus e aos índios, mas que correspondia a uma linha de rumo da Companhia de Jesus, na Europa e no Brasil.
Já no plano da oratória, o açoriano diz que vieira "tem um discurso organizado, persuasivo, às vezes provocador, para se apoderar do auditórioe para quem "não há tempos fracos, todos são fortes".
"O discurso de Vieira é empolgante e entre os principais clássicos é o mais acessível. Continua a despertar e a prender a atenção", remata António Valdemar.
(Nélia Câmara, 10.2.08, Diário dos Açores)
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
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