sexta-feira, 28 de março de 2008

Por mares outrora navegados

Foram 356 dias. Durou praticamente um ano a ‘empreitada’ marítima e cultural transatlântica que Abreu Freire, investigador e professor convidado na Universidade de Aveiro (UA), e mais alguns tripulantes moveram a bordo de um veleiro para percorrer o caminho traçado pelo padre António Vieira no século XVII. No ano em que se comemoram quatro séculos do nascimento do jesuíta, Abreu Freire recorda a O AVEIRO os fundamentos e o que fica na memória de uma viagem que quase lhe ceifou a vida.

No dia 17 de Março de 2007 começou a aventura do CHIC - Cruzeiro Histórico Identidade e Cidadania. Um veleiro de 43 pés atracaria no mesmo pontão de Aveiro a 7 de Março de 2008, com cerca de mil páginas de histórias na bagagem.

Duas ordens de razões inspiraram a partida: "divulgar e entender" Vieira. A paixão pela figura brotou em Abreu Freire há mais de 30 anos, a ponto de o ter como "um dos grandes monumentos da cultura portuguesa e um dos maiores portugueses de sempre"."Pela grandeza que previu para este país, pelo seu espírito crítico e positivo, pelo empenho que teve em todas as tarefas que assumiu e pela sua visão do futuro", considera.

Ao lado do autor e comandante da expedição seguiu o alemão Dietmar Schramm, engenheiro e artista plástico e ainda o realizador Jaime Ribeiro e o cineasta Luís Costa (na viagem de ida), com o seu cão Quetzal. João Quaresma e Rafael Quaresma, marinheiros práticos do Amazonas, acompanharam-nos no regresso.

Dos assaltos a Camocim e a Belém

Na primeira paragem, em Cabo Verde, onde o Padre António Vieira passou uma semana no Natal de 1652, o grupo sofreu o primeiro "grande choque" ao ser vítima de um assalto à mão armada. Nada que desmotivasse ‘as tropas’.

Chegaram depois a Salvador da Bahia, já no Brasil, uma cidade "lindíssima, a primeira grande capital do império português, a cidade branca mais negra do mundo [risos], a cidade dos orixas, candomblés e da mistura de raças", descreve o investigador.

Depois de passarem pelo Recife, chegaram ao sítio que mais impressionou: a pequena cidade piscatória de Camocim (Ceará). "Foi quase um oásis na nossa viagem, foi a grande descoberta! É praticamente uma cidade europeia, onde tudo é português. Os nomes, as casas, o estilo... Parece uma cidadezinha do Alentejo ou das Beiras. A simpatia das pessoas foi tão grande que praticamente não nos deixaram comprar comida nenhuma. Todos os dias vinham trazer-nos peixe fresco e tomavam conta do barco".

Também São Luiz do Maranhão e Belém do Pará resgatam semelhanças "portuguesas e aveirenses", como os azulejos. A calma de Camocim contrastou com o "pandemónio" de Belém, "muito violenta, complicada e difícil" e onde foi preciso vigilância policial para proteger o barco.

Redescobrindo António Vieira

Ao longo das cidades, o grupo fez várias incursões pelo interior do Brasil, calcorreando os espaços por onde Vieira andou como educador, pregador e missionário.

"Foi em Belém do Pará e no Maranhão que ele imaginou e começou a descrever o Quinto Império e a globalização. Não foi nem em Roma, nem na Holanda, nem em Salvador da Bahia ou Lisboa, foi lá, no meio dos indígenas mais primitivos da terra onde esteve como missionário", sustenta Abreu Freire.

No Maranhão, Vieira "criou uma estratégia fantástica e fez com que hoje o Brasil fosse um só país", promovendo a ligação terrestre entre o Norte e o Sul [a navegação era impossível] através de "missões para pacificar os indígenas".

Ver a vida por um fio

O veleiro regressou à Europa fazendo escalas técnicas nas ilhas das Caraíbas, Bermudas e nos Açores e, já no continente, em Oeiras e Peniche. Porém, a volta foi melindrosa, demorando quatro penosos meses.

Atravessaram o Atlântico em pleno Inverno e enfrentaram uma tempestade tropical imprevista. Já a noite se instalara quando de repente uma "vaga imensa" fez com que o barco capotasse por completo e a tripulação temesse pela própria vida. Tiveram mais sorte que companheiros de outros barcos e não sofreram baixas.

Apesar dos muitos prejuízos a bordo e de terem de improvisar nos arranjos para "conseguirem chegar a casa", foram bem sucedidos. Percorreram quase 11 mil milhas, o equivalente a um "pouco mais de metade da volta ao mundo".

PEDRO JOSÉ BARROS, O AVEIRO, 27 de Março de 2008


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quarta-feira, 26 de março de 2008

Padre António Vieira

O que há de grande na vida e obra do Padre António Vieira é a harmonia do cristão, pregador e missionário, do português, patriota e combatente, do homem, humanista e lutador pela dignidade dos outros homens. Uma harmonia entre o explorador da Amazónia, o mensageiro secreto e discreto do rei, humanista de grande saber e de voz profética, orador e estilista ímpar. É o lutador do pensamento, o visionário realista destes quase 90 anos passados numa e noutra margem do Atlântico, dos faustos da Roma barroca dos papas aos sertões da Baía, da companhia dos grandes da política europeia aos míseros índios do Maranhão, entre o favor dos reis e a perseguição dos grandes. No Brasil português, Vieira bateu-se pela dignidade dos índios, defendendo-os contra as injustiças e opressão, ao mesmo tempo que procurava para eles a protecção da Coroa, o que lhe valeu a fúria dos colonos. Deste tempo e circunstância data o mais célebre dos seus sermões, o Sermão de Santo António aos Peixes. Também neste tempo brasileiro ele explorou a bacia do Amazonas, viajando milhares de quilómetros rio acima, embrenhando-se pelo Tocatins e pelo Madeira, e nessas paragens terá redigido o Quinto Império do Mundo, Esperanças de Portugal.

Esta actividade no terreno não o impede, porém, de dar largas a uma outra das suas facetas: a de conceber grandes projectos estratégicos para Portugal, tais como o de conseguir o retorno ao reino dos cristãos-novos emigrados na Europa e dos seus capitais, a troco da liberdade religiosa; e a concepção de uma grande companhia multinacional de comércio e navegação, para o Brasil e o Oriente, à semelhança das companhias majestáticas holandesas. Entretanto, a maioria destes projectos malogrou-se, pois Vieira, como outros portugueses de excepção, teve dificuldade em ser entendido pelos poderosos do seu tempo e gerou, bem pelo contrário, um cortejo de invejas, de calúnias, de intrigas, de golpes baixos.

Quatrocentos anos depois do seu nascimento, o que ainda impressiona na pessoa, na vida e na obra do Padre António Vieira é precisamente esta "harmonia da discordância" das actividades, a extraordinária qualidade do trabalho desenvolvido em áreas tão diversas, em ambientes tão distantes, em "províncias do saber" tão variadas, em terras e gentes tão remotas. E sempre fiel ao seu Deus e à sua Pátria, aos seus ideais católicos e portugueses, sem parar por isso de interrogar o tempo e os seus modos, o passado, o presente e o futuro. E que espantosa modernidade, assente num profundo conhecimento da natureza humana, das suas limitações e grandezas, expressa de forma ímpar no sermão Pelo Bom Sucesso das Nossas Armas: "A mais perigosa consequência da guerra e a que mais se deve recear nas batalhas, é a opinião. Na perda de uma batalha arrisca-se um exército; na perda da opinião arrisca-se um reino. Salomão, o Rei mais sábio, dizia que 'o melhor era o bom nome, que o óleo com que se ungiam os reis'; porque a unção pode dar reinos, a opinião pode tirá-los.

"Vieira era, por tudo isto, um visionário genial. Tendo lutado por um poder português no mundo, assente nos factores materiais do poder - nas armas, nas armadas, nas fortalezas -, procurando consequentemente o dinheiro e negócios necessários para os manter, ele viu também que o destino de Portugal era o de poder vir a ser um Quinto Império: um Império de "mil e muitos anos", uma utopia político-social, sem limite e sem distância, para chegar ao futuro, depois de cumpridos e acabados todos os impérios - inclusive o império português! Seria esse império do futuro a luta que ele travou contra o preconceito racial e esclavagista que expulsara o cristão-novo e oprimia o índio brasileiro? Talvez. Mas, de qualquer modo, um genial profetismo este, nos meados do século XVII, um padre jesuíta que pensa uma companhia transnacional para responder à globalização dos mercados e dos interesses, que prega a grande unidade e dignidade universais das criaturas do Reino de Deus neste mundo, e que a tudo isto dá um sentido cristão e português.

(MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO, "DIÁRIO DE NOTÍCIAS", 27.3.08)

O dia da Paixão

Neste ano, meu artigo de Sexta-Feira da Paixão corresponde aos 400 anos do nascimento do Padre Antonio Vieira, a quem Fernando Pessoa chamou de imperador da língua portuguesa. Vieira sobreviveu quatro séculos e continuará vivo porque não foi somente o pregador, o divulgador da fé, o evangelizador dos índios e o inconformado com todos os tipos de escravidão humana. Foi um humanista e um grande escritor. E, como escritor, vive na eternidade de grande pensador. Fazem parte dos seus grandes sermões os quaresmais. Ele não se continha no relembrar os fatos litúrgicos da Paixão, os episódios que levaram à crucificação, mas enfrentava os sentimentos maiores contidos na visão cristã da morte pelos homens do filho de Deus. Tomemos por exemplo o ‘Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma’ de 1644. Não é um convite ao recolhimento, é a proposta de meditar sobre um tema difícil e sempre dentro de nós: amor e ódio. O mais difícil de todos os ensinamentos de Cristo, que é aquele que manda ‘amar vossos inimigos’ (‘Diligite inimicos vestros’, Mt. 5). Esse preceito é ‘o mais rigoroso da lei evangélica’, sustentavam santo Agostinho e são Jerônimo. ‘Repugnante à natureza humana’, e sobre esta natureza devia ser a meditação de todo o tempo dos 40 dias da Quaresma, que comparava aos 40 dias do dilúvio. ‘Neste chovia água, naquele, misericórdia’. A chave de cumprir aquele princípio está em Sêneca: 'Se queres ser amado, ama' ('Si vis amari, ama'). A Quaresma, para Vieira, é tempo de ‘desenganos’, em que se tem o exemplo do ‘destino da existência humana’. Começa com cinzas, a lembrar que somos pó e ao pó retornaremos, em seguida vem o sacrifício de jejum, a cobertura dos altares, para que nem os santos vejam essa ‘semana penosa’, na expressão de são Bernardo, mas a semana maior do calendário da igreja. E nos propõe meditar sobre ‘quem padece, o que padece, por quem padece’. Com Alçada Batista, grande escritor português, numa Semana Santa em Lisboa, discutíamos sobre a fé, o difícil espaço das religiões nos dias atuais, e ele me resumiu todo o simbolismo da Sexta-Feira da Paixão: ‘Só há uma maneira de afastarmos todas as dúvidas: é saber que ela traz um mistério e os mistérios não são revelados. Acreditar sem indagações’. Eu acrescentaria a chave de nossa fé, que seria vã, na expressão de são Paulo, se não fosse a ressurreição. ‘Sem ressurreição, não há cristianismo’. E aqui vai o meu sermão com o mesmo Deus da minha infância, da minha juventude, da minha maturidade, da minha velhice, que um dia me cobrará: ‘José, onde estão tuas mãos que eu enchi de estrelas?’.

(DIÁRIO DO AMAZONAS, 26.3.08)

quarta-feira, 19 de março de 2008

Padre Antônio Vieira 400 anos

Na sessão solene na Câmara Municipal de Salvador, no dia 11.03.2008, em homenagem ao IV Centenário de nascimento do Pe. Antônio Vieira


O menino Antônio Vieira chegou à Cidade da Bahia nos idos de 1614, vindo de Lisboa, com a família. Tinha seis anos de idade. As ruas desta cidade, então capital da Colônia, testemunharam a trajetória do menino que morava nos arredores do Mosteiro de São Bento e freqüentava as aulas do Colégio do Jesuítas, no Terreiro de Jesus. O Paço Municipal, este edifício em que nos encontramos agora, ficava bem no meio do trajeto que o pequeno Antônio fazia todos os dias até à escola. Esta cidade viu aquele menino crescer “em idade, sabedoria e graça”, até se tornar o gigante que atravessou o séc. XVII, deixando a sua marca definitiva na nossa história. O jovem que aos 15 anos, escolhendo servir à maior glória de Deus, desafiou o mundo – disse não ao próprio pai que queria vê-lo noutra posição, noutra carreira - para se tornar jesuíta, amadureceu no confronto com a dura realidade do seu tempo.

Tendo recebido toda a sua formação acadêmica aqui, no Colégio dos Jesuítas da Bahia, tornou-se o maior autor de língua portuguesa do século XVII, um dos mais celebrados oradores sacros de todos os tempos.

Para se ter uma idéia do – digamos – magnetismo de sua oratória, vejamos a descrição que faz um de seus biógrafos, o padre André de Barros: “Correu fama e antes de repontar o dia, começou a ocupar-se o largo terreiro adjacente ao Colégio. Via-se das janelas a multidão e prevendo-se as conseqüências dela, celebraram-se as missas a portas fechadas. Mas, logo que se abriram e entrou a imensa turba, viu-se tomado o amplíssimo espaço, impedindo só o respeito o não subirem também aos altares. Chegadas as horas de sair a missa solene para o altar-mor, como era grande a multidão de gente, foi dificultoso o passarem com decência os celebrantes, não sendo menor depois a dificuldade para chegar ao púlpito o esperado orador.”.

Podemos nos perguntar: Qual a relevância da palavra do Pe. Antônio Vieira para os dias de hoje? O que a vida e a obra de um jesuíta que viveu 400 anos atrás pode nos inspirar? Sugiro que escutemos o próprio Antônio Vieira.

Sobre a pretensão de nobreza, de prestígio, da honra vã do mundo, ele diz: “A verdadeira fidalguia é a ação... Cada um é as suas ações, e não outra coisa... Quando vos perguntarem quem sois vós, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações... O que fazeis, isso sois, nada mais.”

A igualdade de todos perante Deus é matéria de reflexão de Vieira: “A lei de Cristo é uma lei que se estende a todos, com igualdade, e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno: ao alto e ao baixo: ao rico e ao pobre: a todos mede pela mesma medida”, diz o Pe. Vieira no Sermão de Santo Antonio.

Sobre a escravização dos índios, causa que consumiu não poucos anos de sua longa e atribulada vida de missionário, junto com os seus companheiros jesuítas pelos sertões do Brasil, faz a seguinte reflexão: “Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados... porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo... acomodando-nos à fraqueza do nosso poder e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defesa...à força de persuasões e promessas (que se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou morrer junto das nossas...não só não lhes defendemos a liberdade, mas pactuamos com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meio cativos, obrigando-os a servir alternadamente a metade do ano” (Sermão da Epifania, l662).

A escravidão negra, ferida ainda aberta na nossa consciência de povo brasileiro, foi também tema de suas exortações. Em um dos Sermões do Rosário, compara os escravos negros ao próprio Cristo. Ele diz: “Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão... Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo.” Falando da crueldade dos senhores de engenho no trato com os escravos: “Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos... Não há trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas... as abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.” Em outro texto, Vieira convida a uma reflexão a respeito da dignidade dos negros, filhos de Deus e herdeiros do Cristo: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja para mim matéria de profunda meditação... Comparo o presente com o futuro, o tempo com a Eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus, que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para doces infernos, um nesta vida, outro na outra.”

Condena o luxo e a riqueza dos abastados de seu tempo, em contraste com o sofrimento dos pobres: “Se as galas, as jóias e as baixelas ... foram adquiridas com tanta injustiça e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram, haviam de verter sangue; como se há-de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis a quem despistes para as vestir a elas, estão nus e morrendo de frio; como se há-de ver a fé, nem pintadas nas vossas paredes?” (Sermão da Quinta Dominga da Quaresma)

A corrupção dos governantes, mal secular que envergonha nossa civilização, é motivo também da denúncia do jesuíta profeta. No Sermão do Bom ladrão, ele diz: “O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam”.

Sobre o Brasil e a Bahia, e a ganância dos que exploravam as riquezas desta terra, diz Vieira no final do Sermão da Visitação: “quero acabar este sermão com uma profecia alegre...e é que desta vez se há de restaurar o Brasil... Muitos transes... tens padecido, desgraciado Brasil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam palácios com os pedaços de tuas ruínas, muitos comem o seu pão ou o pão não seu com o suor do teu rosto; eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo; eles por ti vivendo em prosperidade, tu por eles a risco de expirar. Mas agora alegra-te, anima-te, torna em ti, e dá graças a Deus, que já por mercê sua estamos em tempo que se concorrermos com o nosso suor, há de ser para a nossa saúde.” ... “Anime-se, pois, a fidelidade e liberalidade deste povo a se socorrer e ajudar nesta causa tão justa e tão sua, estando mui certo e seguro que se der o suor, se der o sangue, não há de ser para que outros vivam e triunfem, senão para que nós vivamos e triunfemos de nossos inimigos. Tudo o que der a Bahia, para a Bahia há de ser; tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.”

A palavra do Pe. Antônio Vieira, lapidada em meio aos conflitos políticos e religiosos da Colônia e da Metrópole no século XVII, ecoa hoje profética, denunciando os nossos pecados como nação, como Igreja, como povo. E anuncia a redenção dos que preferem trilhar o caminho apontado por Jesus no seu Evangelho: o caminho da caridade, da ética, da solidariedade com os empobrecidos, da promoção da justiça que a própria fé exige. O caminho da retidão do coração, da consciência limpa.

Homens e mulheres do século XXI, se quisermos de fato encarar os males de nosso mundo, de nosso país, de nossa cidade, com o olhar crítico, com a visão limpa e o desejo de escrever a “história do nosso presente e do nosso futuro”, olhemos o exemplo deste homem que nos precedeu no limiar de nossa história enquanto nação.

A palavra – eterna! – de Vieira atravessa os séculos. E hoje é fonte de inspiração a todos nós, que desejamos construir um mundo mais humano, mais bonito, onde o ser humano possa brilhar, como a glória de Deus!


Pe. Miguel de Oliveira Martins Filho sj
Padre jesuíta, assistente da Direção,
Professor e Orientador Espiritual
no Colégio Antônio Vieira.
miguel@jesuitas.org.br

Vieira em Salvador

Dois eventos marcam a abertura das comemorações do IV Centenário em Salvador

Música Barroca para celebrar o IV Centenário de Antônio Vieira

O Colégio Antônio Vieira, dos Jesuítas da Província Brasil Nordeste da Companhia de Jesus, abriu as comemorações do IV Centenário de nascimento de seu patrono na capital da Bahia, com um concerto solene de música barroca na Catedral Basílica de Salvador, no domingo, dia 09 de março (na imagem) . Sob a regência do maestro alemão Hans Bönisch, mestre de Capela da Catedral, o Coro e Orquestra Barroco na Bahia apresentou peças de Govanni Baptista Pergolesi (“Stabat Mater”), Antonio Vivaldi (”Beatus Vir”), e Johann Sebastian Bach (“Meinen Jesum Iass ich nicht – BWV 124”), com a participação das solistas Cyrene Paparotti, Anatália Jatobá Neta e Isabelle Aguiar. A Catedral Basílica é a antiga Igreja do Colégio dos jesuítas da Bahia, uma belíssima expressão do barroco jesuítico, palco da vida do Pe. Antônio Vieira no século XVII.

Sessão solene na Câmara Municipal de Salvador

A Câmara Municipal de Salvador promoveu uma sessão solene para marcar o IV Centenário de nascimento do Pe. Antônio Vieira e o aniversário de 97 anos do Colégio que leva seu nome. A sessão especial foi proposta pelo Vereador Silvoney Sales, e contou com a presença de alunos, professores, funcionários e jesuítas do Colégio Antônio Vieira, instituição educativa da Província Brasil Nordeste da Companhia de Jesus, que conta hoje com 4.500 alunos. O Pe. Domingos Mianulli, diretor do Colégio, lembrou no seu discurso as motivações que levaram os jesuítas portugueses a escolherem o nome do Pe. Antônio Vieira como patrono do colégio que fundaram em Salvador no dia 15 de março de 1911, ano do retorno dos jesuítas ao nordeste brasileiro, muitos anos depois da sua expulsão, no final do século XVIII.

Ver no post seguinte a imagem dessa sessão e a intervenção nela proferida

segunda-feira, 17 de março de 2008

Cruzeiro nas rotas de Vieira

Terminou, no início deste mês de Março, a viagem pela rota marítima que o Padre António Vieira traçou, há quatro séculos, e que o Cruzeiro Histórico Identidade e Cidadania (CHIC) percorreu ao longo de aproximadamente um ano. A expedição marítima está integrada no projecto “ICIPAV.2008 – Identidade e Cidadania: Padre António Vieira 2008”, em associação com o Mestrado em Ciências da Educação, ministrado pelo Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro (UA).

A coordenação do projecto, a cargo Abreu Freire, faz parte da programação comemorativa do Ano Vieirino (os 400 anos do nascimento de António Vieira foram assinalados a 6 de Fevereiro). Tal como recorda a UA em comunicado, o CHIC largou, a 17 de Março de 2007, de Aveiro em direcção aos caminhos marítimo percorridos por António Vieira, um dos maiores escritores de língua portuguesa.

Numa primeira fase, com quatro tripulantes a bordo, o CHIC atravessou o Atlântico rumo ao Brasil. A 21 de Março chegou à ilha da Madeira e, a 1 de Abril, a Cabo Verde de onde partiu, a 12, para atravessar a linha do Equador (21 de Abril). A chegada a São Salvador da Bahia deu-se a 30 desse mês, 43 dias depois de abandonar Aveiro.

A segunda fase da jornada reconstituiu o percurso de Vieira no Brasil (Recife, 27 de Julho, Ceará, 18 de Agosto e 16 dias depois, Camocim. A viagem prosseguiu por São Luís do Maranhão e Belém do Pará).A viagem foi registada por dois tripulantes, profissionais do audiovisual, para edição breve em formato de cinema, televisão e multimédia. No blogue do projecto, Abreu Freire descreveu os passos do CHIC, construindo o “Dário de Bordo”.

Em http://www.ua.pt/vieira2008/ pode ler-se “A viagem de regresso começou a 30 de Outubro, fazendo escala em diversas ilhas das Caraíbas. Martinique a 10 de Novembro, Guadeloupe no dia 20, Barbuda e Antígua nos dias seguintes. Em Saint Martin, alguns dias de reparações e largada a 6 de Dezembro. Uma violenta tempestade tropical fez “capotar" o CHIC e obrigou a uma nova paragem forçada em Hamilton nas Bermudas. Depois de escalar nos Açores, chegou a Oeiras, de onde o padre António Vieira partia no seu tempo. Mais uma paragem em Peniche e regressou às águas calmas da Ria de Aveiro, completando quase um ano de viagem pelas rotas de Vieira”.

Apesar de todos os contratempos vividos durante o ano de navegação, o veleiro CHIC espalhou, com êxito, a palavra de António Vieira pelo Atlântico. É desta forma que o mentor do projecto sintetiza a experiência: “Pelo longo roteiro desta viagem encontrámos paisagens deslumbrantes, no mar como na terra, florestas e desertos, (…) grandes cidades e aldeias remotas, e sobretudo seres humanos maravilhosos com quem partilhámos as nossas paixões e o nosso vinho. Valeu a pena percorrer estes espaços de um dos maiores portugueses de sempre, para melhor entendermos a sua mensagem, para dar a conhecer a todos quantos hoje se apaixonam pela nossa língua a grandeza inimitável do seu poder de crítica construtiva, do seu patriotismo, da sua visão optimista de um futuro grandioso para todos os que falam português, o que tarda a acontecer”.

A próxima etapa levará Abreu Freire a cruzar os percursos de Vieira na Europa.

Veja a notícia no CienciaPT.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Sermões de Vieira

Em seus cerca de 220 sermões (são peças oratória de cerca de 50 páginas, em média), Vieira abordou temas sacros e profanos, sempre com paixão e eloquência, com objetividade e sapiência, com amor e inteligência, com oportunidade e consciência; e, entre os nove sermões designados de Santo Antônio (de Lisboa, dito de Pádua), o que hoje abordamos é o dos peixes, decerto o mais conhecido, e, indiscutivelmente, entre todos o mais brilhante, até porque inspirado no famosíssimo e homónimo sermão do Santo, também ele brilhantíssimo orador sacro, se bem que, ambos, profundos psicólogos, sensíveis sociólogos, sapientíssimos filósofos, brilhantes estilistas, atributos diuturnamente comprovados, pelo que muitos e profundos ensinamentos transmitem aos leitores. Neste sermão, começa Vieira por declarar: "Nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles". Foi pregado a 13 de junho de 1654 em São Luís do Maranhão, e é como que uma continuação do Sermão das Tentações, também pregado perante os colonos, em defesa da libertação do índios escravos, quando Vieira lhes atirou: Que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos e que todos nós nos sustentássemos DOS NOSSOS BRAÇOS; porque melhor é SUSTENTAR do SUOR PRÓPRIO, QUE DO SANGUE ALHEIO"!.

O "Sermão das Tentações" teve certo impacto entre os colonos esclavagistas, mas, com o tempo, tudo foi regressando ao estado anterior, pelo que o nosso EVANGELIZADOR, no ano seguinte, achou por bem voltar à carga, e fê-lo magistralmente com o "Sermão de Santo Antônio", ou dos Peixes, onde usou abundantemente de metáforas e alegorias, no sentido de impressionar e influenciar as "almas" de seus ouvintes, deles conseguindo, assim, algumas regalias para os pobres índios seus protegidos, objecto, meta e razão de ser de seu apostolado. Neste sermão, Antônio Vieira começou por dissertar sobre o tema "
Vós sois o sal da Terra", enquanto elemento inibidor da CORRUPÇÂO - das almas, que também dos corpos - após o que passou ao tema principal (os homens peixes), para, logo depois, apontar a sua bateria de argumentos, exemplos e questionamentos contra as injustiças e violencias dos "grandes" contra os "pequenos", dos poderosos contra os indefesos, dos parasitas contra os que trabalham. Foi então que desferiu esta certeira acertiva:

"A primeira coisa que me desedifica de vós - peixes - É QUE VÓS VOS COMEIS UNS AOS OUTROS. Não só vos comeis uns aos outros, SENÃO QUE OS GRANDES COMEM OS PEQUENOS. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastaria um grande para muitos pequenos; mas, como os grandes comem os pequenos, NÃO BASTAM 100 PEQUENOS, nem 1.000, PARA UM SÓ GRANDE, e, para que vejais que estes comidos na terra são os pequenos, e pelos modos que vós vos comeis no mar...OS HOMENS, COM SUAS MÁS E PERVERSAS COBIÇAS, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros...Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é,QUERO QUE O VEJAIS NOS HOMENS. Olhai, peixes, lá do mar para a terra...cuidais que só os tapuias (índios) se comem uns aos outros?. Muito maior açougue é o de cá, MUITO MAIS SE COMEM OS BRANCOS".

Desde então - como agora e sempre, por todos os séculos - vêm os homens de bem (recordemos os Homens Bons, como eram chamados os venerandos vereadores dos municípios de antanho, que nada ganhavam para - com competência e honradez - governar os seus munícipes, e cotejêmo-los com a caterva de hoje) pregando mais para os peixes que para os governantes e poderosos, uns e outros, na maioria dos casos, comendo por si e por muitos, "quando um só dos GRANDES daria para sustentar 100 ou 1.000 dos pequenos"!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!. Como dizia Camões - mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o prazer e a confiança - tudo é feito de mudança...- só neste caso continua a mesma dança!!!, diríamos nós, olhando as misérias deste mundo, face a tanto desperdício, a violência, que atinge principalmente os pacíficos, a maldade, que ataca especialmente os bons, a indignidade, de que são vítimas normalmente os dignos, a miséria em que se encontram os que mais arduamente trabalham e produzem. PENSEM EM TUDO ISTO!!!

(José Verdasca, escritor português)

Antônio Vieira

Passou quase despercebida a data do quarto centenário de nascimento do Padre Antonio Vieira, um dos mais importantes missionários, oradores, escritores, diplomatas, e defensores da unidade territorial na história colonial luso-brasileira. Exceto o belo e oportuno texto do padre e professor José Carlos B. Aleixo, publicado no Correio Braziliense em 11 de fevereiro, pouco mais foi escrito sobre a magna data.

Natural de Lisboa, nascido em 6 de fevereiro de 1608, era filho de Cristóvão Vieira Ravasco e de Maria de Azevedo, “fidalgos de nobre linhagem”. No final de 1615 transferem-se para o Brasil, indo residir em Salvador, onde o pai fora nomeado escrevente do Tribunal de Relação.

Aos 15 anos contraria os pais e ingressa como noviço no colégio dos jesuítas. Um ano depois, com a cidade sob ameaça de invasão pelos soldados holandeses, fogem padres e seminaristas para se abrigar entre indígenas. Aos 17 anos já se achava encarregado de elaborar, em latim, o relatório anual da congregação aos superiores em Roma. Aos 18 passa a lecionar retórica no seminário de Olinda e, em 1633, profere o primeiro sermão público, intitulado Quarta dominga da quaresma, em que toma como mote o versículo 12 do capítulo 6 do Evangelho de São João, sobre a multiplicação dos pães: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca”. Em 1635, finalmente, recebe as ordens sacerdotais.

Com parte do território colonial dominado pela Holanda, e ante os repetidos fracassos dos nossos soldados e colonos diante de tropas melhor aparelhadas, Vieira, em 1640, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da cidade de Salvador, prega o sermão “Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”, na opinião dos críticos o mais veemente libelo contra o desamparo divino jamais lavrado em língua portuguesa. Empunhando o Salmo 44 como estandarte, depreca: “Acorda, ó Senhor! Por que dormes? Acorda! Não me rejeites para sempre. Por que escondes a tua face, e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão?” Escreve João Viegas, no posfácio de A missão de Ibiapaba, “Vieira chama Deus ao conflito. Irá Ele permitir que o Brasil caia nas mãos de calvinistas?” Por certo não, eis que, logo depois, incapazes de quebrar a resistência dos sitiados, os agressores levantam o cerco e se retiram.

Vieira foi, antes de tudo, o missionário evangelizador que se opôs às violências praticadas contra os nativos, submetidos a trabalho escravo antes da chegada dos negros africanos, atuação que lhe trouxe o ódio de colonizadores e a hostilidade de representantes da Coroa portuguesa.

Sob distintos pontos de vista é insuperável a obra sacra e documental deixada por Vieira. São 15 volumes de sermões e três de cartas, escritos esparsos, alguns extraviados e outros não concluídos, apesar de haver trabalhado doente e quase cego até as vésperas da morte, em 18 de julho de 1697, aos 90 anos de idade. Algumas das obras-primas de Vieira permanecem surpreendentemente atuais, como a Carta de 1654, em que D. João IV pede-lhe que opine sobre haver na capitania do Pará dois capitães-mores ou um só governador. Responde o jesuíta que “menos mal lhe parecia que houvesse um só ladrão do que dois”, e que “mais dificultoso serão de achar dois homens de bem do que um”. Invoca, a seguir, o romano Catão, a quem fora indicada a designação de dois comandantes para provimento de duas praças-fortes. Redargüiu o imperador que nenhum dos dois nomes o satisfaziam, “um porque nada tinha; outro porque nada lhe bastava”. Conclui Vieira, “e eu não sei qual a maior tentação, se a necessidade, se a cobiça”.

Revestido do mesmo ímpeto acusatório é o sermão do Bom Ladrão, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655. Narra Vieira que, tendo D. J oão III solicitado a São Francisco Xavier que o informasse sobre o estado em que se encontravam os interesses portugueses na Índia, respondeu-lhe o santo que ali o verbo rapio (arrebatar, roubar, pilhar, saquear) era conjugado em todos os tempos e modos. Furtava-se no indicativo, imperativo, mandativo, optativo, conjuntivo, potencial, permissivo, infinitivo, “porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lhe deixam raízes em que se vão continuando os furtos”. Acrescentou Vieira: “Não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se houvesse”.

Numa época em que a moralidade pública baixou a níveis críticos, e tanto a política como as confissões religiosas transformaram-se em fontes de súbito e duvidoso enriquecimento, não é de surpreender o silêncio que se fez em torno do quarto centenário de nascimento do extraordinário e santo jesuíta. Padre Vieira, com efeito, caiu no esquecimento.


(Almir Pazzianotto Pinto, in O Imparcial, São Luis do Maranhão)

terça-feira, 11 de março de 2008

Busto de Vieira para o Rio de Janeiro

Segundo a Agência Lusa, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, que esteve no Brasil integrado na comitiva do Presidente da República portuguesa, referiu que a sua Câmara decidiu oferecer à cidade do Rio de Janeiro um busto do padre António Vieira, para ser colocado numa rua da cidade.

segunda-feira, 10 de março de 2008

António Vieira astrónomo

O magistério plural do padre António Vieira não se esgotou na defesa da condição humana ou na diplomacia, de par com prédicas do alto do púlpito tem-se omitido ou subalternizado, ao evocar os créditos do afamado jesuíta, que os céus foram para ele algo mais do que um local piedoso e refrigério das almas; leitor de Johannes Kepler, o grande matemático, Vieira recorreu com frequência aos seus argumentos. Aliás, o elemento celeste esteve, amiúde, em uso na palavra e na escrita modelar do mestre, mormente a pretexto da observação de cometas e consequentes implicações proféticas, ajustadas à causa sebastianista da Restauração portuguesa.

Num relance sobre as notificações astronómicas do pregador jesuíta, vemos que este teorizava sobre a manifestação dos cometas ao jeito de alguns dos seus mais considerados coevos, como o referido Kepler, o matemático suíço Jacques Bernouilli ou o filósofo italiano Tommaso Campanella. Se António Vieira acalentava, sem equívocos, uma figuração ideal dos cometas para uso teológico, como "avisos de Deus", por outro lado, procurou sempre distanciar-se da astrologia "judiciária", prognóstica.

Esta faceta do jesuíta não prejudica a sua feição mista de físico natural e teólogo um breve relance pelas "Cartas" do insigne jesuíta confirmam-nos a sua proficiente catalogação de inúmeros eventos astronómicos a que procedeu, mormente no decurso da sua estada em Coimbra e, mais tarde, em terras brasileiras, na Baía. Nas suas trocas epistolares com D. Rodrigo de Meneses e o Marquês de Gouveia, Vieira denota a sua acuidade face a todos os episódios astronómicos, o cuidado rastreio de toda a espécie de prodígios celestes e atmosféricos que remete invariavelmente para a sua "cometomância" político-messiânica. Típica desta permanente atenção aos céus é uma missiva endereçada ao cónego Francisco Barreto: "Cá apareceu um cometa aos 6 de Dezembro, dia em que foi coroado El-Rei, muito maior que o grandíssimo que lá vimos no ano de oitenta, em figura de palma, que se estendia desde o horizonte até ao zénite e levava o curso para a parte austral tão arrebatado qual nunca se viu em outro".

Textos de António Vieira, como o opúsculo "Voz de Deus ao mundo", ilustram as suas leituras sobre o significado dos cometas, das suas origens e matéria constituinte, do aparecimento de novas estrelas, do posicionamento dos planetas da ordem ptolomaica, e dos vaticínios políticos que ele recolhe das diversas conjugações celestes. No que toca à matéria e essência cometárias, o emérito jesuíta mostra, com clareza, num dos seus sermões, em 1641, a sua fidelidade às concepções de Aristóteles, subscrevendo que "a matéria dos cometas são os vapores ou exalações da terra subidas ao céu". Deve-se a Vieira a primeira descrição mundial do cometa Jacob ( 1695 ), rastreado por ele na Baía aos 87 anos. Então, o pregador retorna a Kepler, confessando dúvidas acerca da explicação aristotélica para a formação daqueles corpos celestes.

De quando em vez, emerge a experiência sensorial do nosso orador sacro, simultaneamente descrente da arquitectura fabulosa dos signos do Zodíaco, projectados no firmamento, conquanto firmemente convicto dos "sinais" que dele deduz. De facto, Vieira assume um cepticismo perceptivo unilateral perante as aparências e "mentiras do céu", impugnando as construções dos matemáticos e dos astrólogos face a "este céu cá de baixo", o "céu da terra", numa amostra de realismo súbito e paradoxal. Percebe-se qual o céu visado pelo pregador o "lá de cima", como diz. De resto, "cuida o vulgo que vê o Céu e engana- -se, porque não chega lá a nossa vista. Isto que chamamos céu é uma mentira azul: e se as mentiras do céu da terra são tão formosas, quais serão as verdades do Céu"?

Adepto do geocentrismo, sinal da impoluta estabilidade da sua cosmovisão, não espanta a divergência de Vieira ante Copérnico, provada nos seus sermões. Todavia, deixa ao livre arbítrio dos seus ouvintes/leitores a escolha do modo como queiram representar a sua relação com o Sol, vincando embora a sua postura. Em defesa dos juízos eclesiásticos, o homem de fé socorre-se de excertos bíblicos para asseverar a imobilidade intransigente do orbe terrestre. Como poderia Copérnico ter lugar nesta centralidade terrestre, insondável e única, na lógica religiosa centrípeta do "mundo" de António Vieira?

(in "Jornal de Notícias", 11.3.08)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Vieira na Madeira

O Funchal associou-se ontem às iniciativas que, um pouco por todo o mundo, estão a assinalar o 4.º centenário do nascimento do Pe. António Vieira. Foi através de um colóquio promovido pela diocese (Departamento de Educação Cristã para Adultos), na APEL, e trouxe até nós dois notáveis conferencistas.

“Nós somos pigmeus, anões aos ombros de gigantes, dizia o Pe. António Vieira. Cada geração nova coloca-se aos ombros da geração anterior,dos gigantes, e aos ombros deles vemos mais longe. Vieira foi um deles”, considera o Professor José Eduardo Franco.

Do Padre António Vieira nunca se sabe tudo, nem muito. A sua grandeza literária já percorreu quatro séculos da História portuguesa e, no entanto, permanece actual.

A sua memória foi ontem recordada no Funchal, num colóquio com dois especialistas: o Prof. José Eduardo Franco e a Prof.ª Carlota Urbano. Enquanto o historiador da cultura falou do “Pe. António Vieira: A palavra e a utopia”, e ainda “Vieira, crítico social: o combate à Inquisição e à escravatura”; a docente da Universidade de Coimbra desenvolveu o tema da “formação do génio de Vieira” no contexto da Companhia de Jesus de que era membro.

À margem da sua conferência, em declarações ao Jornal da Madeira, Carlota Urbano lamentou que as “Humanidades” não sejam hoje em dia tão consideradas como no passado. A falta de interesse ou a eventual “crise não é provocada pelas novas tecnologias”, explicou, “mas por uma certa cegueira, um certo entusiasmo que nos está a fazer perder os horizontes e não há um empenho em alargar a todos os domínios do saber as ciências humanas, como no tempo de António Vieira. Hoje em dia, realmente, está-se a descurar isso e é uma grande perda para as gerações do futuro porque estamos a cortar as raízes da sua própria identidade e da própria construção do futuro; omitindo essas raízes culturais, sobretudo de índole clássica e cristã, retiramos-lhes a memória e não se sabendo realmente quem é dificilmente se sabe aquilo que quer ser”.

Neste caso, o exemplo vem de fora, pois, grandes países desenvolvidos, “como os EUA e a Ingaterra dão importância, valor, às Humanidades e talvez possamos aprender com isso”. Conclusão, “estamos a ser lentos em perceber que precisamos de manter vivo um valioso património e de o comunicar às gerações seguintes”. A mesma opinião foi partilhada pelo Prof. José Eduardo Franco ao JM:“Precisamos de figuras inspiradoras, espécies de faróis que nos guiem para ousar ir mais longe”.Uma nota final: o colóquio sobre o Pe. António Vieira que, à partida, devia suscitar grande interesse por parte das escolas e universidade foi pouco aproveitado; valeu ao escasso público presente “saborear” a cultura de qualidade que não se encontra facilmente.

(Vera Luza no Jornal da Madeira 2.3.08)
Vera Luza

Carta de um leitor

Do leitor Carlos Maduro, recebemos a seguinte carta, que agradecemos:

Em primeiro lugar os meus parabéns pela ideia da criação deste blog dedicado ao Pe António Vieira.

Ironia do destino, que já mantive algum tempo um site acerca de Vieira, vejo-me presentemente muito afastado da Net por causa do mesmo Padre António Vieira, sempre Vieira.

Um Vieira que me atraiu a curiosidade por um mero acaso de inscrição num mestrado para assinalar o centenário da morte, levado a cabo pela Faculdade de Filosofia de Universidade Católica de Braga, orientado pelo Sr. Professor Doutor Aníbal Pinto de Castro, e agora matriculado na mesma Universidade para defender uma dissertação de Doutoramento intitulada: As cartas de Vieira, Um Paradigma da Retórica Epistolar do Barroco, também orientado pelo mesmo professor, diga-se em abono da verdade, a outra fonte de motivação para levar esta tarefa a bom termo.

Desta experiência de trabalho, que até à data teve como base uma formação teórica sobre a epistolografia em termos retóricos, remetida para segundo plano nos estudos literários em Portugal, tenho vindo a elaborar uma base de dados, que inclui a digitalização dos textos de todas as cartas de modo a aceder, com as possibilidades que a informática dá, a uma série de informações dispersas ao longo de cerca de 750 cartas que tenho catalogadas, tendo como ponto de partida a edição de Lúcio de Azevedo, mas também as várias edições apógrafas e autógrafas que felizmente ainda se encontram em bom estado de conservação na Biblioteca Pública de Évora, Biblioteca Nacional, Torre do Tombo e Casa de Cadaval.

Mas, se este era o projecto inicial, tem sido a leitura minuciosa da epistolgrafia de Vieira que me tem ajudado a descobrir, e lembrando o Presidente Jorge Sampaio, de que há Vieira para além do orador, do político, diplomata e visionário. Vieira homem importa redescobri-lo e ele está nas cartas. Cartas essas que foram sempre um parente pobre dos estudos vieirianos, ou então, quando feitos, ao serviço de estudos já realizados.

É, pois, neste rumo que me disponibilizo para dar a colaboração que entenderem nesta área, nomeadamente inoformações acerca dos destinatários da correspondência de Vieira.

E tratando-se de um Blog da embaixada, lembro a figura de Duarte Ribeiro de Macedo que julgo ocupar o lugar mais importante em toda a correspondência e acerca do qual, quando tiver alguns dados mais organizados, pois ainda me faltam estudar algumas cartas, terei todo o gosto em enviar algumas conclusões.

Com os meus cumprimentos,

Carlos Maduro

Este blogue fica à inteira disposição deste leitor para acolher as contribuições que nos quiser prestar.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Vieira e a Corrupção

O Colégio Padre Antonio Vieira promove o encontro “Comemorativo dos 400 anos do nascimento de Antonio Vieira”, no dia 6 de Março de 2008, às 19 horas, na Rua Humaitá 52, Botafogo, Rio de Janeiro.

Na ocasião o Ministro Marcos Vilaça, até há pouco Presidente da Academia Brasileira de Letras, falará sobre “Vieira e a corrupção”.

sábado, 1 de março de 2008

Vieira em discussão

A vida e a obra do Padre António Vieira, autor do famoso sermão aos peixes, está em debate num colóquio que se realiza hoje no auditório da escola da APEL. Os conferencistas convidados não têm duvidas, o grito de revolta do pregador no século XVII ainda tem efeitos nos tempos modernos.

José Eduardo Franco, professor do Instituto Europeu de Ciências da Cultura, explicou esta manhã que os grandes pensadores utópicos do século XVII, "estão na base das grandes transformações sociais das sociedades democráticas de hoje". Como parte do nosso património imaterial, a obra de Padre António Vieira é fundamental para a constituição da nossa identidade, por isso é, na óptica deste investigador, é fundamental lê-lo.

Para Carlota Urbano, professora da universidade de Coimbra, o Padre António Vieira apenas respondeu aos desafios do seu tempo. Uma época "conturbada de combate ao esclavagismo, de critica às injustiças sociais, à exploração do homem, pelo homem, às grandes discrepâncias numa sociedade muito hierarquizada e muito pouco igualitária", disse José Eduardo Franco, acrescentando que são temas ainda muito actuais.

( Andreia Nóbrega do "Diário de Notícias" do Funchal, 1.3.08)