Uma questão chave a orientar todo o belo e complexo sermonário do padre Antônio Vieira (1608-1697) diz respeito à maneira como associa a noção teológica tradicional da ''''união mística'''' entre o cristão e Deus com a idéia de ''''concórdia'''' e união do corpo social e político do Estado. A descoberta da essência comum da coletividade é o lugar retórico decisivo da sua oratória, cujos termos mais correntes vou procurar expor aqui.
O seu sermão se posiciona contra a suficiência da certeza interior do reformado - ou herege, como ele diria -, e, praticamente do mesmo modo, contra a suficiência das relações individuais, verticais, ascéticas, entre cada cristão e Deus. Para ele, a verdadeira mediação entre o humano e o divino só ocorre quando é identificada uma substância comum entre os homens, cujo desdobramento numa associação hierárquica, política e institucional, como a do Estado cristão, é necessária e natural. Essa naturalização cristã da política permite dialeticamente ao sermão de Vieira levar ao limite a idéia de sobrenaturalização da identidade racional, moral e voluntária do Estado. A latência divina prevista no corpo político do Estado é tal que os acontecimentos que lhe dizem respeito são uma espécie de crônica da Providência a agir na história.
Não há, desse ponto de vista, qualquer concordância relevante entre os argumentos de Vieira e as teses de viés maquiavélico que postulam uma separação entre moral religiosa e pragmática política, de tal forma que a adoção das leis positivas do Estado atendam exclusivamente à conveniência do príncipe ou à sustentação do governo.
A posição de Vieira a respeito permanece ortodoxa: a política deve a sua legitimidade ao concurso da hierarquia de leis implantada por Deus na Criação. Além disso, nos sermões, a idéia de participação do indivíduo na concórdia social tampouco é afim ao sentimento de compaixão pessimista ou trágica pela existência humana.
Bem ao contrário, trata-se de uma atualização vibrante da comunhão entre o homem e seu Criador. Nos termos das virtudes cristãs pressupostas nos sermões, nada há moralmente superior a essa inserção na sociedade dos homens, assim como nada pode ser pior do que a sua recusa, uma vez que é sustentada pela presença de Deus.'
'''Amar ao próximo'''', a fórmula exemplar da pastoral da ''''união mística'''', não é apenas um apelo à consciência do indivíduo, mas também uma convocação para o fortalecimento do Estado católico, entendido como lugar privilegiado de comunicação entre a vontade humana e a divina. Não é razoável imaginar, nos sermões, uma ética cristã da concórdia, do amor ou da amizade dissociada de uma inserção ativa num organismo de poder.
O ato ético se encaminha naturalmente para a consolidação do Estado cristão, pensado à semelhança da organização monárquica da Igreja. Reciprocamente, para Vieira, não há meio de haver Estado duradouro ou futuro que não seja fundado no amor de Deus: um amor ''''fino'''' e ''''desinteressado'''' que ordena aos homens que, antes de amá-lo a ele, amem-se entre si.
Por isso mesmo, Vieira radicaliza a idéia de coletividade como sede de uma ''''Encarnação Comum'''' ou ''''Segunda Encarnação'''', na qual Deus se apresenta na disposição dos homens para se unir entre si. Diz, por exemplo, num Sermão do Mandato, de 1655: ''''É verdade que Deus na Encarnação não tomou a natureza humana em comum, senão uma humanidade particular , mas essa mesma humanidade e essa mesma carne, unida à divindade, fê-la Cristo universal e comum, dando-a no Sacramento a todos os fiéis, e unindo-os realmente consigo; e como ficam unidos, e encarnados com Cristo, a mesma Encarnação do Verbo se estende e multiplica em todos nós.''''
Resta perguntar: qual ''''reunião de homens'''' cumpriria exemplarmente a finalidade dessa ''''Segunda Encarnação'''', mais amorosa e mais universal que a de Cristo? Certamente, não é preciso apresentar razões para não identificá-la com uma ''''comunidade invisível'''' de crentes. A comunidade adequada deve evidentemente estar inserida no corpus mysticum da Igreja institucional.
Mas, para Vieira, a questão do ''''corpo místico'''' não se restringe ao edifício eclesial ou ao sacerdócio militante. A pedra fundamental da Igreja, que existe em sua visibilidade hierárquica, se prolonga até o organismo do Estado católico. Assim, a aceitação do Cristo sacramentado na Eucaristia conduz diretamente à efetuação da concórdia das forças políticas do Estado cristão - o qual, como se sabe, no caso de Vieira, está pensado prioritariamente nos termos do império português.
Da concórdia, amorosa e política conjuntamente, depende a defesa, sustento e propagação desse império. A comunhão torna-se um ato tão estratégico politicamente quanto a formulação de um plano diplomático de sustentação da soberania. Assim, no Sermão do Santíssimo Sacramento, de 62, Vieira diz: ''''O corpo de Cristo, a quem comungamos, como é um só e o mesmo em todos os que o comungam, a mesma unidade que tem e conserva comido comunica aos que o comem. E assim todos, por mais e mais que sejam, ficam não já muitos, senão um só(...)''''. E ainda: ''''Com esta união tão unida e tão uma, ficaremos todos, não só unidos, senão aunados com Cristo, entre nós e conosco: unidos pela graça: In me manet, et ego in illo - e aunados pela unidade: Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem.''''
A expressão ''''aunados com Cristo'''' identifica, então, o processo essencial de ''''reunião em torno de um'''', vale dizer, da congregação de todos no corpo místico comum, que é, por isso mesmo, superior a cada um, e único em seu conjunto. Em outro Sermão do Santíssimo, de 45, o sacramento eucarístico também se apresenta como estratégia bélica: ''''Os tempos parece que estão pedindo que se edifiquem antes muros e castelos, que templos, mas esse privilégio têm nomeadamente os templos do Santíssimo Sacramento, que são as melhores fortificações dos reinos.''''
Os ''''tempos'''' pedem ''''templos'''', isto é, as operações de conservação política são finalizadas pela via mística inscrita nelas. Os movimentos da história são atos de co-autoria entre os homens e Deus, cuja melhor caução é a palavra do pregador ''''digno do nome''''. Cabe a ele examinar os sinais divinos nas coisas, atualizar a sua eficácia por meio de provas discursivas e ''''mover'''' as vontades dos fiéis como política voltada para o triunfo histórico do corpo místico, condição do Estado cristão. Dito de outra maneira: a história é a maneira própria de Deus falar aos homens; recolher os signos do sagrado de que está impregnada é o ofício do pregador.
(Alcir Pécora é professor de Teoria e Crítica Literária e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, organizador da edição dos Sermões (Hedra) e autor de Teatro do Sacramento - A Unidade Teológico-Retórico-Política dos Sermões de Antônio Vieira (Unicamp))
(Estado de S. Paulo 3.2.08)