sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Vieira - vida, época, filosofia e obras

Um texto de Rubem Queiroz Cobra, Doutor em Geologia e bacharel em Filosofia

Vida

Examinemos a vida e obra do Padre Antônio Vieira, figura síntese de sua época, sob os seguintes aspectos: sua formação escolástica; sua fidelidade ao absolutismo; seu envolvimento com o problema da perseguição aos judeus e cristãos novos e da escravidão tanto dos africanos, na Bahia, como dos índios, no Maranhão; sua fé romântica típica do sebastianismo; seu problema pessoal com a Inquisição, e seu pensamento filosófico. Missionário jesuíta, orador, diplomata, mestre da prosa portuguesa clássica, teve papel importante em ambas a história portuguesa e brasileira; seus sermões, cartas e papeis oficiais constituem um valioso índice do clima das opiniões no século 17 no mundo luso-brasileiro.

Primeiros anos

Vieira nasceu em 1608, em Lisboa, e faleceu em Salvador, em 1697. Era filho de Cristóvão Vieira Ravasco, mulato, e de D. Maria de Azevedo. Estava Portugal sob domínio espanhol. Em 1578 o rei D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir, na África, onde os mouros derrotaram os portugueses. Não tendo herdeiros, o trono passou para seu tio-avô, o Cardeal D. Henrique que, já velho, morreu em 1580. Filipe II, rei da Espanha, por ser neto de D. Manuel o Venturoso pelo lado materno (Era filho de Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano, e de Isabel de Portugal, filha de D. Manuel), assumiu o trono português. O Império Espanhol passou então a incluir Portugal e as possessões portuguesas, até a revolução que restaurou o trono português em 1640.

O pai de Antônio Vieira fora empregado em casa de D. Fernão Telles de Menezes, conde de Unhão, o qual foi tomado para seu padrinho. Em casa dos condes de Unhão havia trabalhado também o avó paterno de Vieira, Baltazar Vieira Ravasco. Esse avô era branco, natural da vila de Moura, mas, quando empregado em casa dos Condes, enamorou-se de uma serviçal mulata da mesma casa, que foi a avó paterna de Vieira. Dizem os biógrafos que o romance motivou que ambos fossem despedidos. Perguntado na Inquisição sobre seus antepassados, mais tarde, com 55 anos, Vieira disse nada saber dessa sua avó paterna.

O avô pelo lado da mãe, Dona Maria de Azevedo, era pessoa influente, Brás Fernandes de Azevedo, cristão velho. Este conseguiu para o genro nomeação para escrivão dos agravos da Relação da Bahia, logo que esse tribunal foi instituído. Isto motivou a vinda do pai de Vieira para o Brasil em 1609. Deixou em Portugal a mulher e o filho, para busca-los três anos depois, em 1614, estando Vieira com seis anos.

Vieira teve um irmão e duas irmãs: Bernardo Vieira Ravasco, que ele declarou, quando inquirido no Tribunal da Inquisição, ser alcaide-mor da cidade de Cabo Frio do estado do Brasil, e secretário de estado e guerra do mesmo Brasil, solteiro.Nasceu e faleceu na Bahia (1617-1697), foi Comendador da Ordem de Cristo e teve vasta influência na Colônia; Dona Leonarda de Azevedo casada com o Doutor Simão Alves de Lapenha desembargador dos agravos de Sua Majestade e Cavaleiro do hábito de Cristo. Essa irmã morreu com o marido e os filhos em um naufrágio quando viajavam para Portugal -, e Dona Maria de Azevedo que ele declarou solteira, mas que casou depois com Jerônimo Sodré Pereira. Esses irmãos eram brasileiros, naturais e moradores da cidade da Bahia.

Teve mais as irmãs Catarina Ravasco de Azevedo, mulher do Sargento-mor Rui Carvalho Pereira, falecida sem descendência, e Inácia de Azevedo Ravasco que foi casada com Fernão Vaz da Costa Dória

Vieira foi educado no Colégio Jesuíta da Bahia. O ensino tradicional jesuítico compreendia retórica, filosofia e teologia. Para aguçar em cada aluno o poder de argumentação os jesuítas estimulavam debates sobre temas os mais extravagantes: O que Deus fazia antes da criação do mundo, se poderia criar outros mundos mais perfeitos que o nosso, se as almas das plantas e animais são divisíveis, qual era a estatura da Virgem Maria, etc. Este tom argumentativo, dialético, permeia os sermões de Vieira como um sestro que ficou dos tempos de estudante. Seu professor de filosofia foi o Padre Paulo da Costa.

Manifestando seu desejo de entrar para a ordem jesuítica, Vieira teve a franca oposição dos pais. Fugiu de casa à noite para o colégio, onde o reitor o acolheu sem hesitação, por saber o que sua inteligência prometia. No dia seguinte, ano de 1623, iniciou seu noviciado, contando então quinze anos. Levaram-no para a aldeia do Espírito Santo onde os padres doutrinavam os indígenas, a sete léguas da cidade, para distanciá-lo da família inconformada.

Juventude na Bahia

Vieira ainda era um noviço quando, em 1624, ocorreu a invasão da Bahia pelos holandeses.

Em 1581 a Holanda havia proclamado sua independência, libertando-se do domínio da Espanha. Em represália, Filipe II fechou todos os portos portugueses e espanhóis aos navios holandeses. Essa medida constituiu um violento golpe na economia holandesa, que controlava o transporte, o refino e a distribuição do açúcar brasileiro na Europa. Para superarem esse obstáculo, os poderosos comerciantes holandeses criaram a Companhia das Índias Ocidentais para a conquista dos mercados produtores, no caso o Nordeste Brasileiro (Bahia e Pernambuco).

Quando a armada da Companhia das Índias Ocidentais chegou em maio a Salvador o povo fugiu para os matos, grande parte dos habitantes de Salvador se dispersou pelas aldeias dos índios, sob a direção dos padres jesuítas. O governador geral Diogo de Mendonça Furtado foi preso e embarcado para a Holanda. Assumiu interinamente o governo D. Marcos Teixeira, quinto bispo do Brasil, que adotou a forma de guerrilha para combater o invasor.

Essa tática terminou por dar resultado e no ano seguinte, 1625, chegou a esquadra espanhola e retomou a cidade. Os holandeses se renderam e quando, pouco depois, chegou uma esquadra holandesa para reforço, nada mais pode fazer. Todas as propriedades holandesas (navios, ouro, etc.) foram confiscadas e receberam navios e mantimentos apenas suficiente para partirem de volta para a Holanda.

Vieira contava apenas 16 anos, e já conhecia latim tão admiravelmente que os padres o encarregaram de relatar o acontecido na *Carta anua para o Geral da Companhia em 1626, a primeira escrita após a interrupção de dois anos ocorrida naqueles tempos anormais. Relembrando a noite da invasão, diz o jovem noviço: "Mas quem poderá explicar os trabalhos e lástimas desta noite? Não se ouviam por entre as matas senão ais sentidos e gemidos lastimosos das mulheres que iam fugindo; as crianças choravam pelas mães, e elas pelos maridos, e todos, segundo a fortuna de cada um, lamentavam sua sorte miserável".

Encerrados os dois anos do noviciado vividos no período da invasão, Vieira fez os votos simples de pobreza, obediência e castidade e passou de imediato ao treinamento pedagógico a que os candidatos às ordens sacras estavam obrigados na Companhia de Jesus. Em 1627 está em Olinda, lecionando retórica no colégio jesuíta. Mas logo é chamado de volta à Bahia, com certeza pela falta sentida de seus préstimos. Somente em 1634 seria ordenado padre, e diz seu biógrafo J. Lúcio de Azevedo que nada se sabe do período que precedeu à sua ordenação.

Ordenado padre, as ocupações Vieira são o magistério no colégio e nas aldeias indígenas, e a pregação. Seu primeiro sermão foi pronunciado na Quaresma de 1633, antes de receber as ordens. Em 1635 escreveu o seyu livro "Curso Filosófico" adotado no Colégio todo o século XVIII. Cedo apareceu como erudito e como orador eloqüente. Alguns de seus sermões mais enérgicos sobre a guerra holandesa e situação dos escravos foram feitos na Bahia. Em 1638 os holandeses, vindo de Pernambuco, tentaram tomar Salvador pela segunda vez, mas não conseguiram. Com o invasor às portas, em número de 3.400 soldados comandados por Maurício de Nassau, Vieira usou, para o sermão na igreja de Santo Antônio, no dia do santo, o versículo do Livro dos Reis: "Porque eu defenderei esta cidade, para salva-la, por mim próprio por meu servo David".

O irmão de Vieira foi ferido nas lutas pela recuperação de Itaparica. Após um sítio de 40 dias que logrou impor à cidade, a tropa assaltante teve de retirar-se.

Vieira trabalhou entre os escravos índios e negros até 1641, quando foi incumbido de levar congratulações ao Rei D. João IV em sua ascensão ao trono.

A primeira viagem à Europa

D. João IV (reinou 1640-1656), nascido em 1604, era duque de Bragança. Subiu ao trono na revolução vitoriosa contra os espanhóis em 1640. Pertencia à casa de Avis que reinara antes dos 60 anos de domínio espanhol, fundando assim a dinastia dos Bragança.

O vice-rei do Brasil, tendo de enviar seu filho D. Fernando à Metrópole, a levar a adesão da Colônia a D. João IV, fá-lo acompanhar de dois jesuítas, o Padre Vieira e outro religioso também ilustre, o padre Simão de Vasconcelos, que seria depois afamado cronista da Ordem.

A luta dos portugueses contra o domínio espanhol, - esclarece Lúcio de Azevedo -, fora sustentada por um civismo místico, com fundamento em profecias de Bandarra, um sapateiro inspirado, que desde 1540, em um livro de trovas, consignara os destinos de Portugal. Dos solares dos fidalgos às escolas onde as crianças rudes do povo aprendiam, o Bandarra era o livro de leitura e a bíblia do patriotismo. Nada contribuiu tanto para manter vívida a esperança na redenção do estrangeiro. Suas profecias de grandeza esperava-se que se concretizariam com a volta de D. Sebastião, que se supunha ainda vivo, pois ninguém o vira morrer na batalha em África. Porém, torcidas, reinterpretadas, falseadas onde foi necessário, aplicaram-se aos fatos da restauração. O Encoberto, o rei desconhecido de que falavam os vaticínios, podia muito bem ser D. João, o Duque de Bragança.

Assim se preparou o ambiente em que brotou a revolução pela restauração da monarquia portuguesa. Restaurado o trono, ao Bandarra tributaram-se grandes honras. O próprio D. João IV aceitava a designação de "O Encoberto", como sagração de sua realeza pela intenção divina.

A essa crença aderiu também Vieira. Seu companheiro de viagem, o Padre João de Vasconcelos, compunha a "Restauração de Portugal", apologia mística do rei aclamado, coligindo ali as maravilhas e profecias que justificavam o ato revolucionário e foram a principal razão dele. Nas suas pegadas, Vieira escreverá *Quinto Império do Mundo e *História do Futuro.

Conselheiro do Rei

Ao cabo de aventurosa viagem com destino a Lisboa, o jovem fidalgo e os dois religiosos foram obrigados a desembarcar em Peniche devido a uma tempestade que desarvorou a nau, e ali um mal entendido os levou à prisão, tomados por contra-revolucionários aderentes do governo espanhol. No dia seguinte, desfeitos os equívocos, partiram para Lisboa.

Recebidos pelo Rei, no mesmo instante Vieira conquistou a simpatia do monarca que, com certeza, percebeu logo o quanto Vieira lhe poderia ser útil. Tinha Vieira não apenas conhecimento dos assuntos do Brasil, como sabia muito da psicologia do inimigo holandês.

Vieira está em Lisboa com 33 anos de idade. Sua fama no Brasil já alcançara Portugal. Começa a pregar na Igreja do seu Instituto - S. Roque. Lisboa invadia a igreja para ouvi-lo. Convidado a pregar para o Rei, Vieira pregou pela primeira vez na Capela Real no dia do Ano Bom de 1642. O Rei tornou-se admirador da personalidade magnética e segura de Vieira e passou a olhar o jesuíta alto, magro e dinâmico como "o maior homem do mundo".

Cada vez mais íntimo da família real, estimado pela conversação inteligente e manifestamente clara compreensão dos negócios do Estado, em pouco tempo Vieira dava o voto mais autorizado e decisivo em importantes negócios de Estado. A essa ajuda na qualidade de conselheiro, juntava-se outra ainda mais preciosa. Era tão aflitiva a situação do reino que nos sermões cabia alertar o povo sobre tudo que fosse interesse da pátria, pois não havia meios de comunicação senão as prédicas e o que se noticiava de boca em boca.

Vieira pelo concurso de ouvintes e influência da sua palavra, colocava-se inteiramente a serviço do rei e até a favor dos impostos chama à responsabilidade os cidadãos. Fazia sua exortação ao patriotismo paralelamente com a exortação moral em que os negócios mais graves do Estado saiam a lume, e através de alegorias da Bíblia analisava atos do governo e a conduta dos homens públicos. Quando necessário, nem o próprio soberano, figura sagrada para o povo, escapava às admoestações e à censura. "Sabei cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos ha de pedir estreita conta do que fizestes."

Completados os 35 anos, Vieira ainda não era jesuíta professo. Faltava-lhe fazer o quarto e último voto, o de obediência ao Papa, que, segundo Lúcio de Azevedo, professou em 26 de maio de 1644.

Missões e empenho pelos cristãos novos

Entre 1646 e 1650 Vieira esteve engajado em missões diplomáticas na Holanda, França e Itália, com os mais variados misteres. A mais relevante foi com certeza a do acordo entre Portugal e Holanda. A Holanda queria uma indenização por ter perdido Pernambuco, mas que intentava reconquistar. Preparou uma nova frota para ir ao Brasil a qual, para felicidade de Portugal, se desmantelou no Atlântico devido a forte tempestade. O ponto dificultoso das negociações era a fiança que haveriam os holandeses de pedir pela mora, até se realizar cinco ou seis anos mais tarde o pagamento final.

Aqui se oferece a Vieira ensejo de renovar seu empenho em favor da gente hebraica. Ele havia apresentado em 1643 uma exposição de motivos ao Rei, na qual argumentava que o reino estava em estado miserável depois do domínio espanhol (que não defendera as colônias de Portugal permitindo que a Holanda se apoderasse de boa parte delas) e que era um contra-senso a perseguição aos judeus. Dizia "Por estes reinos e províncias da Europa está espalhado grande número de mercadores portugueses, homens de grandíssimos cabedais, que trazem em suas mãos a maior parte do comércio e riquezas do mundo. Todos estão desejosos de poder tornar para o Reino...Se Vossa Majestade for servido de os favorecer e chamar, será Lisboa o maior império de riquezas..." Dizia mais que todos os países viam a miséria de Portugal. Nenhum país colocara embaixada no Reino restaurado e que o desprezo era tanto que o Papa não recebeu o embaixador português.

A volta dos judeus, além de enriquecer Portugal, haveria de enfraquecer o inimigo que deles se valiam com grande vantagem, porque na Espanha, judeus portugueses estavam cuidando da administração da fazenda real e emprestando ao monarca espanhol muitos milhões enquanto não chegavam as frotas com o ouro da América. "E o mesmo sucederá na Holanda, cujas companhias, que nos tem tomado quase toda a índia, África e Brasil, vivem em boa parte à custa da finança judaica portuguesa". E lembra ainda os exemplos da França e da própria Roma, "onde se permite a existência de sinagogas com seu culto". E porque se permitia no reino de Portugal comerciantes protestantes de várias nacionalidades e não se permitiam comerciantes judeus?

A Companhia de Jesus considerava imprudente e comprometedor o empenho de Vieira. O Rei, escreveu uma carta (1644) ao Provincial da Companhia recomendando que não fosse maltratado Vieira por motivo de suas idéias.

Seu plano no negócio com a Holanda, como um desdobramento da representação antes feita, era que dos cristãos novos poderiam vir a dar a fiança necessária ao acordo.

De volta de Paris onde fora tentar o apoio do governo francês para as negociações com a Holanda, Vieira deteve-se em Ruão para consultar os cristãos novos portugueses ali residentes. Além da questão dos créditos que buscava para o reino, Vieira empenhou-se com os judeus sobre o projeto de os restituir à pátria. Naquela cidade florescia então, com o consentimento tácito das autoridades, o judaísmo, e era ela, quase tanto como Holanda, refúgio dos hebreus portugueses.

Uma vez na Holanda entrevistou-se também com os judeus de Amsterdã e lhes fez promessas como aos de Ruão, no sentido de trabalhar para que fossem favorecidos com mercês régias os cristãos novos.

Homem preocupado com todos os assuntos que dissessem respeito a Portugal, Vieira, estava também empenhado em que Portugal reformasse os velhos galeões e adquirisse navios modernos para a sua frota. Aconselhara o rei a comprar quinze fragatas armadas, que em Holanda se ofereciam ao preço de vinte mil cruzados cada uma. Alguns desses navios foram adquiridos por intermédio do embaixador em França e ele próprio levou encargo para outros, quando no ano seguinte voltou à Holanda, para o que obteve de dois importantes negociantes cristãos novos os recursos necessários.

Sentindo o apoio firme de D. João IV, tomou Vieira a iniciativa de defender os judeus contra a Inquisição que lhes confiscava os bens antes mesmo de encontrar-lhes culpa formada..

D. João IV não podia desfazer as penas impostas ao crime de heresia pelo direito canônico, nem intervir na jurisdição do Santo Ofício. Com certeza por inspiração de Vieira, assinou um alvará que solucionava a questão, ou seja, que os cristãos novos não perdessem os seus bens quando detidos pelo Tribunal por culpas inventadas por inimigos seus. D. João se comprometia a devolver aos cristãos novos aquilo que lhes fosse confiscado, pois embora a condenação fosse feita pela Igreja, os bens confiscados destinavam-se ao Estado, deduzido pela Inquisição o necessário para sustento da sua máquina e liturgia.

O Santo Ofício protestou contra tal abolição perante o Rei e recorreu ao Papa. Os inquisidores obtiveram do Papa um breve pontifício restabelecendo o confisco. Quando apresentaram o documento a D. João IV, este argumentou que, como quem ia ficar com os bens confiscados era ele, o monarca, ele podia perfeitamente, como proprietário, devolve-los aos seus donos. Assim conseguiu manter a resolução.

Ao mesmo tempo foi criada uma companhia portuguesa para exploração das colônias com liberdade para participação de capital judeu. Inscreveram-se os cristãos novos mais ricos. Duarte da Silva, que dera o crédito para os navios de Holanda, e que em seguida fora preso pela Inquisição, estava agora com os bens desembaraçados em virtude da nova lei, reuniu-se a muitos outros, juntando-se enorme capital.

A Inquisição: primeira investigação

A inquisição, como era natural, revoltou-se, e Vieira estava publicamente comprometido com a o projeto. O caso produziu escândalo em toda a parte no país. Os amigos da Inquisição, que eram os inimigos dos cristãos novos, juntos aos inimigos de Vieira, que eram muitos, não cessavam de publicar a sua indignação. Pode-se afirmar que foi nesse tempo Antônio Vieira o homem mais aborrecido em Portugal. Uns o apodavam de traidor, por que sugeriu ao rei entregar Pernambuco aos holandeses em troca da paz, quando a questão dos fiadores parecera sem solução. Outros o infamavam de herético, por tentar restabelecer as sinagogas no reino.

Ora, o quanto acabrunhado devia andar Vieira é fácil de imaginar. Afinal, era de se esperar que Holanda fosse um país amigo de Portugal, porque também havia lutado contra a Espanha para firmar sua soberania Se havia atacado e montado um enclave no Brasil, o fizera exatamente porque era um ato hostil à Espanha herdeira do reino e das colônias portuguesas no processo de sucessão de D. Sebastião. Valia muitíssimo a pena ter novamente Holanda por aliada contra a Espanha, garantindo assim a paz e segurança de todo o império português que se desejava restaurar e fortalecer. Que isto custasse deixar os Holandeses em paz no Pernambuco, havia parecido ao estadista, a certa altura dos acontecimentos, um preço muito razoável. Quanto aos judeus, Vieira estava tão certo que, ainda hoje, não se compreende como pôde Portugal agir com tanta insensatez, expulsado de seu território justamente aqueles que haviam desenvolvido o seu comércio e haviam feito de Lisboa o mais importante porto comercial do Atlântico.

Os Inquisidores então passaram a reunir "denuncias" contra Vieira: uso de livros proibidos trazidos do estrangeiro; proposições como a da conveniência de consentir em Lisboa, como se consentia em Roma, o funcionamento de sinagogas, e várias repetições, pelos denunciantes, de afirmações muito conhecidas de Vieira a respeito de que se desse tratamento diferentemente a judeus e a judaizantes. Apesar de serem posturas conhecidas, ganhavam com a denuncia o caráter de novidade indispensável para criar assombro e escândalo tardio. Nada foi apurado que realmente fundamentasse um processo, mas as investigações estimularam entre os jesuítas àqueles que não compreendiam Vieira ou o hostilizavam gratuitamente.

Seus adversários em sua própria Ordem acusaram-no de hábitos mundanos, adquiridos nas missões diplomáticas, do vestuário secular que usou em lugar da batina, e de ter a seu serviço um criado que Vieira pagava para lhe facilitar a vida apertada de compromissos por toda a parte. Denuncias e queixas repetiram-se em Roma, e tantas foram que o Geral determinou fosse Vieira expulso da ordem. O Geral porem voltou atrás, quando o Provincial em Portugal informou que o rei, determinara que nada se fizesse, pois afastaria Vieira da Corte concedendo-lhe uma diocese. Mais surpreendente ainda a resposta de Vieira ao soberano, dizendo que não trocaria sua batina de missionário nem por todas as dioceses de Portugal.

Apesar de ocupado com os negócios em que era chamado a opinar ou de que era incumbido por em marcha, Vieira não abandona o púlpito nem suas obrigações religiosas, nem deixa a morada com os companheiros jesuítas. Sem dúvida lhe custava tempo a preparação de seus apreciados sermões cujas citações a filósofos, à mitologia, etc., lhe custavam estudos. Diz Lúcio de Azevedo que ante a submissão do acusado, e a atitude de franca proteção que adotara o soberano, a sanha dos acusadores afrouxou. A pena foi suspensa e depois definitivamente anulada.

Exausto talvez de tantos esforços em maquinar meios de garantir a sobrevivência da monarquia portuguesa, - mesmo que fosse às custas de casar o herdeiro português com a princesa espanhola, com a condição de que a capital do reino fosse Lisboa, e dentro da perspectiva de que esse casamento faria o príncipe português herdeiro dos dois tronos -, decide que é o momento de voltar ao Brasil.

Não que lhe faltasse a amizade do rei e do príncipe herdeiro D. Teodósio. Recebe ainda uma missão de acompanhar à Inglaterra o novo embaixador português, porém a recusa. Na data de seu embarque para o Brasil, depois de despedir-se do Rei, este tentou sustar sua viagem mandando ordem ao capitão do navio para não admitir Vieira a bordo. Pelo que diz o seu biografo sobre os pormenores de seu embarque, esse gesto do Rei possivelmente o lançou em dúvida quanto a realmente seguir para o Maranhão. Mas decidiu-se de vez e embarcou na primeira oportunidade, dois meses depois. Em janeiro de 1653, desembarcou Vieira em São Luís do Maranhão como superior dos missionários jesuítas.

Volta ao Brasil: Missão no Norte

Na caravela em que não embarcara Vieira, haviam chegado antes dele ao Maranhão não apenas os padres dos quais ele seria o provincial, mas também um novo capitão mor que trazia carta do rei alforriando todos os índios da província. Por falta de escravos pretos, eram os índios os escravizados para os trabalho nas fazendas e na cidade. Aguardou-se a chegada de Vieira para a publicação da lei. Quando o porteiro saiu a apregoar a determinação real ao som do tambor, o povo afluiu à Câmara em protesto. A libertação dos índios causaria a perda econômica que seria fatal para a província. Atribuíram aos jesuítas haverem conseguido aquela lei dada pelo monarca e se indignaram contra os padres, clamando expulsão e mesmo morte, para Vieira e seus companheiros.

Vieira habilmente encontrou a solução que apaziguou momentaneamente os ânimos. Propôs que aqueles índios que eram legalmente escravos fossem assim mantidos, mas aqueles mantidos ilegalmente em cativeiro fossem daí por diante pagos como trabalhadores livres. Como os colonos não tinham propósito algum de pagar, aceitaram satisfeitos a solução e voltaram com seus índios para suas fazendas onde a situação dos silvícolas continuou a mesma.

Desde a chegada desejou Vieira que as aldeias fossem, como na Bahia, entregues à direção dos missionários, e pôs logo seu cuidado em visita-las. Tarefa penosa, pelos descômodos e fadigas que impunha; as milhares de picadas de mosquito dia e noite, o que, porém, ele aceitava de bom grado, pelos frutos que esperava de tantos trabalhos e privações. Seu zelo levou-o até o Pará onde, com alguns padres, navegou em canoas com extraordinário risco para avaliar a potencialidade da província a seu cargo para o ministério jesuítico.

A questão dos índios não chegava por nenhum dos lados a solução aceitável: nem os colonos desistiam do sistema de escravidão que tinham instituído; nem os jesuítas deixavam o propósito de lhes subtrair, ou pelo menos limitar, o domínio sobre os silvícolas cristianizados.

Achando-se os jesuítas acuados e limitados pelo poder dos fazendeiros, decidiu Vieira com seus companheiros que iria ele a Portugal tratar as questões com o rei.

A segunda viagem a Portugal. Em breve visita a Portugal de 1654 a 1655 ele obteve decretos protegendo os índios da escravidão e um monopólio para os jesuítas na proteção dos índios.

Viagem atribulada, o barco enfrentou uma tempestade quando já próximo aos Açores, chegando a virar sobre um dos bordos, salvando-se por reconhecido milagre a tripulação e passageiros. Um pirata holandês os encontrou, confiscando a carga de açúcar que levavam, mas deixando-os em segurança no porto da Graciosa. Com o dinheiro que havia manejado esconder, Vieira comprou roupas e comestíveis para todos e meios para continuarem para Lisboa. Ficou nas ilhas por mais de dois meses até partir para Lisboa em um navio inglês.

Em Lisboa voltou a pregar na Capela Real, com outros pregadores reais. Seu tema era principalmente a corrupção dos políticos, de cujos efeitos acabava de sofrer no Brasil. O rei que andara doente à época da chegada de Vieira, em nada se sentiu atingido pelo cáustico moralista, e atendeu plenamente às reivindicações que lhe apresentou Vieira. Foi instituída administração conjunta do Pará e Maranhão, o que deveria minorar os problemas enfrentados pelos jesuítas e, mais ainda para satisfação de Vieira, caberia a André Vidal de Negreiros, herói pernambucano na luta pela libertação de Pernambuco, e que já estava nomeado para o governo do Maranhão, governar conjuntamente as duas províncias.

Reunidos o futuro governador, Antônio Vieira e altos funcionários, assentou-se o regime definitivo dos índios livres, em um estatuto próprio que fixava o quando deveriam receber como salário mínimo pelo seu trabalho, e outras disposições solicitadas pelos jesuítas no sentido de proteger os silvícolas. André Vidal partiu em 1654 e Antônio Vieira algum tempo mais tarde. O rei o proibiu de embarcar mas, tendo Vieira lhe proposto que ouvissem a opinião dos jesuítas sobre ficar ele em Lisboa ou retornar ao Brasil, e tendo esses decidido, por maioria, que seria melhor para a Ordem que retornasse ao Brasil, o soberano aquiesceu em autorizar sua partida.

Sedição do Maranhão

No norte, as lides de Vieira voltaram a ser as viagens visitando as aldeias, ensinando e pregando, algum tempo lhe estava ainda para o devaneio.

Em janeiro de 1661, no Pará, a Câmara representou aos missionários pedindo com urgência que se pudesse com urgência arregimentar índios no mato, para o trabalho escravo, Rebateu Vieira dizendo que as causas dos problemas econômicos eram bem diversos

Entretanto surgiu novo conflito, suscitado por uma imprudência de Vieira, do qual tiraram seus opositores grande partido. Foi o caso do chefe da aldeia de Maracaná, a cargo dos jesuítas, no Pará. O índio vivia em concubinato com uma cunhada, um mal exemplo que os padres queriam suprimir. Vieira escreveu-lhe uma carta amável, solicitando que viesse ao colégio onde, chegando, foi desarmado e preso em ferros em uma cela, passando depois ao calabouço do forte de Gurupá. Ao protesto dos índios seguiu-se o da câmara, associando-se a ele as ordens monásticas. O escândalo uniu os padres de outras ordens aos colonos e no inquérito a que se procedeu pelo Ouvidor Geral, em São Luís, os prelados do Carmo, S. Antônio e Mercês, que chegavam do Pará, depuseram em concordância com a representação dos índios.

Ao declarar-se a sedição no Maranhão, Antônio Vieira fazia caminho de Belém a S. Luís. Já próximo da cidade, recebeu carta do governador colocando-o a par da revolta e recomendando que não entrasse em São Luís. Pôs se de volta a Belém onde pretendia acalmar os índios para que não fugissem para os matos, assustados com as notícias que se espalhavam .

Menos de um mes passado, também no Pará rebentou a comoção contra os padres. Como em São Luiz, também em Belém o povo assaltou o colégio e pôs em custódia os jesuítas. Antônio Vieira ficou apartado dos companheiros em uma pequena igreja . Uma índia, Mariana Pinto, que depois foi irmã, conseguia passar a Vieira alguma ligeira refeição, até que entre homens armados o embarcaram para São Luís. Da canoa foi transposto para a caravela que, em 1661 levou todos os padres para a Europa. Vieira não descansava nunca; nesta viagem compôs e proferiu um dos seus mais belos sermões, o do Rosário, que fez ouvir, no domingo 9 de outubro, a seus companheiros na aventura marítima, gente de bordo e passageiros.

Terceira viagem à Europa

Em 1661, Vieira foi expulso para Portugal. Deteve uma situação a ele favorável na Corte, mas que depois reverteu-se inteiramente em contrário. Falecido D. João IV em 1656, e porque falecera também D. Teodósio, primeiro na ordem da sucessão, sucedeu ao pai D. Afonso VI, com 13 anos de idade, sob regência de sua mãe, Da. Luiza de Gusmão (1656-1683). A rainha regente era contrária a entregar o reino a esse filho por sua notória incapacidade para governar; era a favor de que fosse aclamado o irmão mais moço, D. Pedro.

Vieira encontra seu lugar na corte, como em épocas passadas, mais ainda quando a regente, no embate das intrigas e paixões em que a corte refervia, tanto necessitava do conselho e auxílio de homem tão experimentado como o missionário recém chegado do Maranhão. Vieira que muito bem conhecia a vida desregrada do jovem príncipe, pois que toda preparação para reinar havia sido dada a D. Teodósio, coloca-se ao lado da rainha.

Porém já no ano seguinte, em 1662, alguns nobres amigos do herdeiro se puseram a seu lado e o levaram a estabelecer seu governo em Alcântara. Diante desse golpe, não teve outra alternativa a rainha senão passar a D. Afonso os selos do Estado. Os partidários de D. Pedro foram punidos, e Vieira que foi desterrado para o Porto.

Nesse mesmo ano a princesa Catarina de Bragança, irmã de D. Afonso, casou com Carlos II da Inglaterra. Em troca de um rico dote, e de favoritismo comercial, a Inglaterra forneceu armas e soldados para a guerra contra a Espanha. As defesas portuguesas foram então organizadas por um militar alemão, Friedrich Hermann von Schönberg.

Afonso VI era considerado débil mental, e o país governado por Luiz de Vasconcelos e Souza, conde de Castelo Melhor até 1667. Em seu reinado os portugueses, sob o comando de Shönberg, obtiveram várias vitórias contra a Espanha, que em 1668 reconheceu a independência de Portugal. Foi casado com Maria Elizabeth Francesca de Sabóia (princesa francesa) que conspirou com seu irmão Pedro para afastar Castelo Melhor e anular o casamento com Afonso VI. Ela casou com Pedro em 1668, e Afonso VI foi persuadido a passar o trono para seu irmão que poderia ter um herdeiro e foi declarado regente. Desde então o rei foi mantido prisioneiro em Sintra, onde morreu.

No Brasil Vieira havia assentado as bases do que pretendia seria sua grande obra sobre a interpretação dos profetas, que na verdade nunca chegou a publicar. No desterro do Porto retoma seu trabalho intelectual. Faz a revisão de dezesseis volumes de Sermões para dar ao prelo e continua a rascunhar o Clavis prophetarum. Era Vieira bem vigiado pelos partidários de D. Afonso aos quais deixá-lo no Porto pareceu inconveniente. Cogitaram de desterrá-lo para Angola, mas se concluiu por deixá-lo preso no Colégio da Companhia em Coimbra.

Processo na Inquisição

Por falta de amigos na corte, foi aprisionado pela Inquisição que vinha preparando um processo contra ele havia algum tempo. As investigações sobre Vieira arquivadas no Santo Ofício foram reabertas. O decreto do Conselho Geral ordenou ao Tribunal de Coimbra mandasse ir à mesa o jesuíta e o interrogasse sobre o seu escrito *As Esperanças de Portugal em que anunciava a ressurreição de D. João IV, e por seu exagerado interesse em favor dos judeus e cristãos novos. Não pode ser ouvido porque estava doente, do impaludismo contraído no sertão amazônico, cujas crises freqüentemente o prostravam. Ultimamente os incômodos se agravaram de complicações bronquiais, com hemoptises que faziam temer ao doente a tuberculose, doença vulgar na Companhia, devido às macerações e canseiras da vida missionária, e cujo contágio era facilitado pela vida em comunidade. Em maio os médicos aconselhavam a mudança de ares.

Determinaram os superiores fosse o doente para residência do Canal, junto a Buarcos.
Respondeu Vieira que era certo haver feito um papel, em que anunciava a ressurreição de D. João IV, o qual mandara para ser apresentado e servir de consolo à Rainha viúva. Baseava seus dizeres no Gonsalianes Bandarra, a quem todos tinham por profeta, se não em sentido canônico, mas no sentido que era o terem se cumprido as coisas profetizadas. E esclareceu o seu interesse meramente em favor da economia do reino, na questão hebraica.

Apesar de não encontrar nele falta grave, e mesmo antes de ser julgado, determinou a Inquisição sua prisão no cárcere do Santo Ofício, onde ficou por 26 meses até a véspera do natal de 1667. Continuou preso no Colégio da companhia em Coimbra, e mais tarde, por pedido seu, foi autorizado transferir-se para o noviciado em Lisboa. Pouco depois o Provincial da companhia requereu lhe fossem as penas perdoadas, e isto foi atendido ficando em vigor unicamente a obrigação de não tratar o réu das proposições suspeitas.

Sua vida se recompôs. Do palácio lhe veio o aviso de que haveria de pregar na Capela real por ocasião do aniversário da Rainha. Não pregou dessa vez, mas fez vários sermões nos meses seguintes. Magoado, disse em um sermão na Capela Real uma frase que ficou conhecida: "Se servistes a pátria que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma; mas que paga maior para um coração honrado que ter feito o que devia?"

Vida em Roma

Vieira estava porém decido a alcançar em Roma a revisão do seu processo na Inquisição. Pronunciou seu último sermão em Lisboa na festa de Santo Inácio, na matriz de Santo Antão, um extraordinário triunfo oratório. O povo, sabendo que ia pregar naquele dia, logo ao alvorecer e antes que se abrisse a igreja já se achava o largo fronteiro pejado de curiosos. Abertas as portas, num instante ficou lotada a igreja.

A fim de lhe facilitar instalar-se em Roma, recebeu da Companhia de Jesus o encargo de tratar assunto de interesse da Companhia, que era o de tratar da canonização de quarenta padres da companhia, trucidados por piratas calvinistas em 1570 quando iam para o Brasil.

Chegando a Roma, alguns padres foram em carros encontrá-lo no caminho, e a esta homenagem se somou a recepção que o Geral e mais padres lhe fizeram. Sua chegada, no entanto, coincidiu com o falecimento do papa Clemente IX e eleição do papa Clemente X, e isto o obrigaria a adiar seu trabalho junto à Cúria.

Os padres da companhia insistiram com Vieira que pregasse. O Geral João Paulo Oliva manifestou seu desejo que aprendesse o italiano e se dispusesse a pregar ante os cardeais e nobreza romana, o mais culto auditório do mundo. Relutante talvez por cansaço, Vieira não teve escolha quando o Geral impôs-lhe obediência no assunto. Pregou pela primeira vez em italiano em Outubro de 1672 na festa de São Francisco de Assis. Concorreram pessoas notáveis da nobreza romana, alguns prelados e seis cardeais. Seguiram-se vários outros sempre concorridos. Tanto era o interesse em ouvi-lo que, diz Lúcio de Azevedo, tornou-se necessário colocar soldados às portas dos templos onde ia pregar, para impedir que se apossasse o público dos lugares, antes de chegarem as dignidades eclesiásticas e pessoas de representação. Ao sermão, na igreja de S. Lourenço em Damaso, no ano seguinte de 1673, estiveram presentes dezenove cardeais.

Residia em Roma uma outra celebridade, a rainha Cristina da Suécia, que havia renunciado ao trono de seu país. Admirada pelo desenvolvimento industrial e comercial que promoveu, sua renúncia súbita do trono sueco causou surpresa em toda a Europa. Patronisa das artes e da ciência, convidou importantes intelectuais estrangeiros para visitar seu país, inclusive René Descartes, que lhe deu lições de filosofia e morreu na sua corte, em Estocolmo. Renunciou por dois motivos: porque não desejava casar para dar um herdeiro ao reino da Suécia e também porque havia se convertido secretamente ao catolicismo, religião proibida na Suécia.

Em dezembro de 1655 fixou-se em Roma, acolhida pelo Papa Alexandre VII. Tornou-se sensação em Roma, onde comprou um palácio. Depois de ausentar-se em uma conspiração armada em Paris, em que, com a ajuda dos franceses, pretendia sair rainha do reino de Nápoles, precisou de um perdão papal para voltar a viver em Roma.

Foi amiga do cardeal Décio Azzolino, um líder político dos cardeais em Roma, de quem fez seu herdeiro. Ligou-se aos papas, recebeu uma pensão que ajudou-a a manter-se com os recursos que recebia da produção de suas terras na Suécia. Em seu palácio em Roma tinha coleções de pintores famosos, esculturas e o local tornou-se ponto de encontro dos intelectuais e músicos famosos da época. Sua biblioteca hoje faz parte da Biblioteca do Vaticano e seu túmulo (faleceu em 1689) está na Basílica de São Pedro.

Vieira pregou especialmente para a Rainha na quaresma do mesmo ano em que chegou a Roma, e por insistência dela junto ao Geral, - que novamente exigiu de Vieira um ato de obediência -, tornou- se pregador de sua corte. Estreou com uma série de sermões intitulados "As cinco pedras de David". Incluído em seu círculo, a que chamava Academia da Arcádia para filosofia e literatura, o Padre Vieira travou um debate filosófico que lhe valeu aplausos. Nessa Academia os grandes letrados discutiam os problemas mais diversos e faziam conferências para um círculo seleto da nobreza romana.

Através de farta correspondência, trocada inclusive com D. Pedro, Vieira acompanhava de Roma os acontecimentos em Lisboa. Repercutiu em Roma o novo recrudescimento da perseguição aos cristãos em Portugal, no ano de 1672.

Numa manhã de junho apareceu violado o sacrário da igreja do mosteiro de Odivelas. Crer que fosse a ação de herege, e mais particularmente hebreu, era conseqüência natural. Exaltaram-se os ânimos na capital e em todo o país. A 25 de agosto foi ordenada a expulsão de todos os indivíduos penitenciados pelo Santo Ofício desde o último perdão geral, isto é de 1605, pena que abrangia os filhos daqueles que, com veementes suspeitas de heresia, abjuraram, e os filhos e netos dos que tinham confessado, portanto vários milhares de pessoas. Vieira escreve a D. Rodrigo de Meneses, seu amigo, externando sua desaprovação ao decreto de expulsão e informando que a opinião comum era também contrária em Roma e toda a Europa.

Um protesto sem assinatura encaminhado a D. Pedro, e no qual em toda a extensão se enumeravam os inconvenientes da resolução foi logo atribuído a Vieira, e hoje está incluído em suas obras. Apontava a liberdade de crença e, separados os judeus que o quisessem ser, aqueles que permanecessem católicos não se lhes podia por em dúvida a sinceridade, nem de se unirem a cristãos velhos resultaria dano à fé.

Através de cartas, Vieira instigava o príncipe regente a proceder segundo o exemplo de D. João IV que em 1649 concedera aos cristãos novos licença igual a que agora solicitavam para recorrerem ao Pontífice. Todo seu empenho era que a contenda se transferisse para Roma, onde os recorrentes tinham modo de captar os votos e ele meio de cooperar nas diligências.
Afinal, em julho, decidiu-se conceder o que, - a troco de apreciáveis vantagens na formação de uma Companhia que daria apoio a Portugal na Índia -, os homens de negócio pediam: a licença para requerem em Roma a reforma da Inquisição. Vieira deveria escrever ao Pontífice, a recomendar a súplica, e apontando como providencia complementar necessária o perdão geral.
Porém, soando então que tinha o Regente acedido as reclamações dos hebreus, que ia haver sinagoga pública em Lisboa, e que entre os proponentes do negócio da Índia se achavam judeus declarados, vindos de Roma por comissão do Padre Antônio Vieira, os inimigos dos cristãos novos romperam em protestos ruidosos. Alegava-se nos círculos da Inquisição em Lisboa que só das confiscações de bens relativas aos réus então nos cárceres prometia 500 mil cruzados, e para o futuro quantias superiores, para que pois a condenável transação com os hereges?
Recrudesceu em Portugal a perseguição aos cristãos novos pelo Santo Oficio. Choviam as delações e acumulavam-se os presos nos cárceres. Nos últimos dias de julho de 1672 foram recolhidos à inquisição em Lisboa alguns dos mais graduados comerciantes da cidade.
Já com 65 anos, Vieira sofria recidivas de seus achaques do tempo dos interrogatórios da Inquisição. Ausentou-se de Roma para se recuperar, em Albano, dos ferimentos sofridos em uma queda na escada de pedra da residência. O clima em Roma definitivamente o prejudicava na sua saúde.

Uma delegação portuguesa chegada a Roma para tratar assuntos da Igreja e particularmente da Inquisição deu a conhecer a Vieira que o rei D. Pedro (Regente de 1668-1683, Rei 1683-1706) desejava que retornasse a Portugal. Vieira hesita. A insistência do Rei termina por convencê-lo a partir, embora receasse muito o que lhe poderia acontecer no seu retorno, por parte da Inquisição portuguesa, e por achar que nada poderia ajudar mais a seu país.

Em Roma, insistiam em que ficasse. O Geral, que havia antes dissuadido Vieira de recorrer ao Papa contra a Inquisição portuguesa, por temer os estremecimentos que daí poderiam resultar, agora, cioso dos perigos que correria Vieira retornando a Portugal, quando foi decidido que regressaria, cuidou de lhe alcançar a imunidade contra o tribunal português.

Em sua defesa Vieira apontava os defeitos do processo e os defeitos da sentença, esta lançada de modo a exagerar as aparências de culpa e relevar pouco o que poderia recomendar sua absolvição. Arrolou os maltratos que padecera: treze meses de detenção antes de ser pela primeira vez interrogado; não se lhe consentir em dizer missa, o que muitas vezes pedira, nem confessar-se e comungar, senão uma vez pela quaresma; extorquirem-lhe os papeis em que preparava a defesa, e recusarem-lhe livros inclusive a Bíblia.

Sobre as culpas que lhe apontaram os Inquisidores citou o memorial a favor dos cristãos novos de 1643; a criação, a esforços seus, da Companhia de comércio, de que resultou ser depois da morte excomungado D. João IV e todos aqueles que tomaram parte no conselho onde se resolveu a instituição, por Breve obtido sub-repticiamente do Santo Padre sem a declaração das pessoas atingidas; e a defesa da Companhia de Jesus no conflito com a Inquisição ocorrido em Évora, por ter dito na ocasião que "Os inquisidores viviam da fé e os jesuítas morriam por ela" . E dizia mais que haviam tomado como pretexto também a carta em que afirmava a crença na ressurreição de D. João IV e nos vaticínios do Bandarra demonstrando, quanto a esse último item, que a crença em Bandarra era quase geral e forte no seio da Igreja, porque muitas de suas previsões haviam se confirmado, e cita o memorial oferecido pelo Bispo do Porto, Nicolau Monteiro, ao Papa Urbano VIII no qual as profecias do Bandarra são invocadas como argumento.

Assim, por Breve de 17 de Abril de 1675, foi isento Vieira para sempre da jurisdição dos Inquisidores de Portugal e seus representantes, e sujeito unicamente à Congregação do Santo Ofício de Roma; conjuntamente absolvido de quaisquer censuras, interdito ou penas eclesiásticas em que se achasse incurso até então.

Retorno a Portugal e à Bahia. Em maio Vieira deixou a capital romana onde fora durante seis anos admirado e prestigiado. No caminho foi hospede do Grão Duque em Florença; de lá se passou a Gênova e embarcou para Marselha de onde seguiu por terra para Toulouse e lá embarcou pelo rio Garona até Bordéus. A rainha da Inglaterra, a portuguesa Dona Catarina, o convidara para dali seguir para Londres, mas Vieira, por cansaço ou por pressa de chegar a Portugal, não atendeu ao convite, desembarcando em Lisboa em Agosto.

Vieira permaneceu no reino por mais de cinco anos depois que, chamado pelo Príncipe, tornara a Lisboa. Em todo esse período somente uma vez pudera intervir de modo efetivo em negócios públicos, quando convocado em 1680 a participar na junta de Conselheiros do Estado e Ultramarino.

Com a idade avançada, pensa em retornar a sua província no Brasil. Recebeu ainda um chamado da rainha Cristina, encaminhado pelo Geral da companhia, para que retornasse a sua corte em Roma, que recusou, alegando idade e as doenças. Hesitava entre retornar ao Maranhão ou à Bahia. Partiu a 27 de janeiro de 1681 na companhia de outros missionários que iam para a Bahia.
Das primeiras notícias que recebeu de Portugal, chegado definitivamente ao Brasil, foi de uma troça de estudantes em Coimbra, simulando um auto de fé e que os estudantes e a ralé da cidade o queimaram em esfinge aos gritos de "Padre Vieira, vendido aos judeus".

Não parece ter sido de tédio a vida de Vieira, após retornar ao Brasil. Logo que chegou, foi intenção sua viver retirado na quinta do Tanque, de propriedade dos Jesuítas nas vizinhanças da cidade. Seu propósito consagrar-se à ascese e à conclusão dos sermões, que ia reconstruindo de fragmentos e notas e da memória, e concluir outros trabalhos literários. Mas esse retiro não foi possível. Não podia desaparecer sem que a curiosidade o seguisse. Eram duques, marqueses, arcebispos, a solicitar aos irmãos jesuítas notícias de Vieira.

Logo está a trocar assiduamente cartas com amigos na Europa, enquanto trabalha na revisão dos seus sermões. É também involuntariamente envolvido num incidente político desagradável, relativo a seu irmão que vivia na Bahia, Bernardo Vieira Ravasco, e um dos filhos deste, Gonçalo Ravasco. Foi o assassinato do Alcaide, tocaiado à luz do dia e morto perto do Colégio por oito mascarados que em seguida ao crime refugiaram-se na casa dos jesuítas. Lá estava escondido também o referido sobrinho de Vieira, Gonçalo Ravasco, por uma briga que tivera com um meirinho. Daqui nasceu dizer-se que o homicídio do alcaide fora planejado no interior da residência, em conciliábulo a que tinham assistido o filho e o irmão de Antônio Vieira, versão logo aceita pelos inimigos dos jesuítas.

Vieira tinha a intenção de reunir seus sermões em 12 volumes, e já publicara 7. O trabalho exigia grande aplicação porque a maior parte das prédicas estava em notas algo desordenadas. A coleção consta de sermões pregados em diferentes épocas, remontando a antes de 1640 na Bahia.

Com as rendas de seus sermões publicados Vieira se mantinha e também a um secretário, e o restante empregava em socorrer as necessidades dos índios nas missões.

O livro que Vieira pensava seria sua grande obra, nunca saiu a lume: De regno Christi in terris consummato, ou por outro nome, Clavis prophetarum, em quatro livros. Era uma publicação aguardada com interesse. Meditada nos caminhos e rios da Amazônia, começada ao sair da Inquisição, continuada em Roma e Lisboa, era a ocupação em que mais tinha gosto. Por mais de trinta anos ele tinha burilado o texto, e continuava ainda a aprimorá-lo. Agora, perto de nonagenário, fisicamente inválido, possuía ainda clareza das idéias, a agudeza do verbo para concluí-la. Esta obra sumiu-se quase por completo, ficando apenas algumas copias mutiladas. Supõe-se que foi roubada por ocasião de sua morte.

Tendo a rainha Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia falecido, houve grandes homenagens na Bahia. Obedecendo a determinação ao Marques das Minas, o Padre Antonio Vieira fez um sermão, apesar da "falta de dentes e de voz e todos os outros achaques da velhice...", contou ele em carga de agosto de 1684 ao marquês de Gouveia.

D. Pedro II, que ainda não tinha herdeiros, casou-se novamente, em dezembro de 1686, com Dona Maria Sofia Isabel de Neuburgo, filha do Eleitor Palatino Filipe Guilherme de Neuburgo, que lhe deu cinco filhos. Mais tarde, além dos sermões antigos, de que ia sucessivamente mandando os volumes para publicação em Lisboa, preparou Vieira entre 1691 e 1693 um tomo de sermões de São Francisco Xavier, por encargo da nova Rainha, particularmente devota do apóstolo a Índia.

Adoentado, em 1969 Vieira suspendeu sua correspondência com seus admiradores. Repetir-se-ia o acidente de 1673 em Roma: aos 85 anos, já trôpego, caiu de noite por um lance de escada de pedra. Além de ficar molestado em todos os membros, por muito tempo não pode segurar a pena.

Dois anos depois saia da imprensa o undécimo volume de sua coleção dos Sermões, oferecido à rainha Dona Catarina. O último volume, o duodécimo, foi acabado no ano de sua morte, em 1697, A mesma nau em que viajou o manuscrito trouxe a Lisboa a nova de ter falecido o autor.

Pensamento

Vieira considerava-se filósofo, não só "filósofo natural", mas "filósofo cristão". Professor de retórica, compôs para seu uso um curso de filosofia. Seus conhecimentos de história e filosofia transparecem em milhares de comparações e metáforas nos seus sermões. Toda uma monografia seria pequena para considerar o que nos sermões de Vieira há de assuntos filosóficos.
O pensamento de Vieira é genuinamente moderno, apesar de viver na época em que, não só em Portugal como em boa parte da Europa, ainda domina o aristotelismo e a filosofia escolástica ensinada pelos jesuítas, e apesar de ser ele mesmo um padre jesuíta. Para comentar suas idéias vamos utilizar os mesmos trechos selecionados por Ivan Lins como os mais significativos da sua obra.

Contra a lógica e a autoridade Aristotélicas. Rejeitava Vieira o princípio de autoridade própria da escolástica, sancionada pela Igreja e reforçada pelo poder real, para, em substituição, valorizar a experiência como caminho da certeza. No seu Primeiro Sermão da Terceira Dominga do Advento que demonstra claramente sua postura filosófica moderna, realçando o valor da experiência contra o vazio da especulação filosófica aristotélica dedutiva. Diz Vieira: "Nenhuma coisa houve mais assentada na Antigüidade, que ser inabitada a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provaram, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse." As viagens dos descobrimentos provaram ser errada a lógica dos aristotélicos, porque existiam de fato terras habitadas nos trópicos. A verdade foi provada pela experiência de buscar e de ver: "Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África e da América, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um dia de vista que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação".

A propósito de sua postura filosófica, e para não deixar em ninguém qualquer dúvida de que Vieira se alinha com o pensamento dos filósofos modernos, basta ver a carga de acusações que lhe faz a Inquisição portuguesa, entre elas a de fazer uso de livros proibidos trazidos do estrangeiro. Ora, os livros proibidos em Portugal são principalmente os livros dos filósofos empiristas ingleses e de seus aderentes e comentaristas franceses.

Inclusive em seus erros Vieira está emparelhado aos filósofos de seu tempo, pois é uma característica do início da idade moderna a crença em certas forças ocultas, nas quais esses filósofos acreditavam e para cuja explicação queriam encontrar um caminho filosófico próprio, diferente tanto da superstição quanto de sua qualificação religiosa como forças demoníacas. Assim foi com Giordano Bruno, Campanella, e outros, não faltando sinais de propensões esotéricas no próprio Bacon e em Locke. Vieira parece tocado pelas profecias de Bandarra e as utilizou para o fim de inflamar o nacionalismo dos portugueses, e terá que explicar essa atitude aos seus inquisidores, no seu martírio perante o Santo Ofício. Sua crença nos malefícios dos cometas é a mesma que têm os grandes filósofos e matemáticos da época moderna.

A respeito escreveu o opúsculo: Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Bahia: Juízo do cometa que nela foi visto em 27 de outubro de l695 e continua até hoje, 9 de novembro do mesmo ano.
Finalmente, a perseguição pela Inquisição é outro elemento identificador do filósofo moderno, pois o Santo Ofício está precisamente atento e contrário à filosofia moderna quanto a seus métodos, idéias e descobertas.

O desassombro de Vieira em defender a ordem prática, a liberdade de culto, o repatriamento dos judeus portugueses, tudo representa uma inimaginável revolução e um rompimento com o pensamento medieval que vai acontecer de fato somente mais de um século depois, e ainda assim apenas parcialmente, no governo de Pombal. Até lá a idéia de padroado e o absolutismo monárquico, o ensino jesuítico e a Inquisição manterão ao largo a ciência e a liberdade de pensamento, em Portugal e no Brasil. E Vieira já dizia, no Sermão da Sexta-feira da Quaresma, de 1662, em plena Capela Real:, numa velada crítica a São Tomás, o Doutor Angélico: "porque até entre os anjos pode haver variedade de opiniões, sem menoscabo de sua sabedoria, nem de sua santidade; e para que acabe de entender o mundo, que ainda que algumas opiniões sejam angélicas, nem por isso são menos angélicas as contrárias". Este Sermão é todo vazado em termos de aprovação da verdade, e contrário ao culto da autoridade, não importando quem fala, mas a verdade do que é dito. E no Sermão de São Pedro, de 1644, adverte: "Ora, desenganem-se os idólatras do tempo passado, que também no presente pode haver homens tão grandes como os que já foram, e ainda maiores".

Vieira é um dos primeiros a assinalar com entusiasmo o valor das invenções modernas. Em seu História do Futuro admira-se do poder que a pólvora trouxe para a arte da guerra, e a bússola para a arte de navegar, e louva a invenção da imprensa, pela qual "a doutrina (a religião) e a ciência particular dos homens insignes se faz comum a todos em tão distantes lugares...".
Está, sem dúvida muito a par do que escreve seu contemporâneo Descartes, um autor proibido, e com ele concorda aderindo claramente à posição dualista revolucionária daquele filósofo, inteiramente contrária à concepção tomista de unidade substancial do homem ao afirmar, no Sermão 27º. do Rosário", que o homem "é feito de duas peças, alma e corpo". Seu comentarista Ivan Lins também dá como inquestionável que Vieira tenha lido "Os Meteoros", de Descartes, o qual havia realizado experiências para reproduzir o arco-íris e descobrira que era apenas refração da luz e não milagre celeste em cada aparição nos céus. Vieira diz: "na Íris ou Arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade de cores: e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele Arco não há cores, senão luz e água".

Psicologia

A quantos ilustres filósofos e psicólogos não se antecipa Vieira ao afirmar, como faria pouco depois Pascal, que a razão tem razões que não lhe são próprias, mas que partem do coração? É o que ele diz no Sermão da Quinta Quarta-feira da Quaresma, de 1669: "E os erros dos homens não provêem apenas da ignorância, mas principalmente, da paixão. A paixão é a que erra, a paixão a que os engana, a paixão a que lhes perturba e troca as espécies para que vejam umas coisas por outras. Os olhos vêm pelo coração, e assim como quem vê por vidros de diversas cores, todas as coisas lhe parecem daquela cor, assim as vistas se tingem dos mesmos humores, de que estão, bem ou mal, afetos os corações". Um século depois Pascal teria falado assim, não fosse sua irresistível fascinação, tipicamente francesa, por cunhar frases de efeito, donde seu dito: "O coração tem razões que a própria razão desconhece"...

Na psicologia de Vieira encontramos também uma teoria sobre os sonhos em que os dá como realização dos desejos do indivíduo, deixando para Freud apenas acrescentar sua teoria dos símbolos oníricos. É verdade que Vieira inicia com a teoria inventada por Aristóteles, em que este se vale de analogia tipicamente desprovida de base experimental. Mas Vieira corrige seu curso terminando por afirmar, nos Sermões de São Francisco Xavier Dormindo: "Os sonhos são uma pintura muda, em que a imaginação a portas fechadas, e às escuras, retrata a vida e a alma de cada um, com as cores das suas ações, dos seus propósitos e dos seus desejos." E prossegue com grande riqueza de exemplos.

História

Em sua História do Futuro advoga Vieira uma ciência da história, para que os historiadores se afastem os erros que cometem por culpa da paixão. "Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias humanas, leia a mesma história por diferentes escritores, e verá como se encontram, se contradizem e se implicam no mesmo sucesso, sendo infalível que um só pode dizer a verdade e certo que nenhum a diz". No Discurso apologético - Palavra do Pregador empenhada e defendida, Vieira define a história como "aquele espelho em que olhando para o passado, se antevêem os futuros"

Raças

A tão aplaudida afirmação de Buffon, um século depois de Vieira, de que o clima influi nas raças determinando-lhes a cor da pele não representava nenhum risco para aquele cientista, ao contrário do perigo que representou para Vieira, um século antes, afirmar a mesma tese, contrária à tradição bíblica da maldição de Noé contra Cam e seus descendentes. Diz Vieira, em outro trecho do Sermão da Epifania pregado na Capela Real em 1662: "a causa da cor é o sol. As nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do sol". E Vieira sabia de experiência, porque andou por onde Buffon nunca esteve.
Vieira era também um defensor dos direitos humanos e pregou contra a exploração do negro e do índio, para grande aborrecimento dos colonos brancos no Brasil. Vários de seus discursos versam sobre a situação dos escravos africanos. Não se pode, é claro, saber quais sentimentos teria Vieira, colocando-se ao lado dos judeus e cristãos novos portugueses, porque tudo que lhe era permitido alegar, e ainda assim com grande risco para si como ficou provado, era um motivo patriótico. É verdade que seu envolvimento nos negócios do Estado abriram seus olhos para o vulto dos recursos exigidos para a restauração do reino, e os judeus representavam riqueza. No entanto, ele busca favorecer os judeus além do que os interesses econômicos requeriam que fizesse. Mostra nas reivindicações pelos judeus igual pertinácia e igual risco quanto teve na defesa dos índios do Maranhão.

O sistema solar

Na ambigüidade do seu Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado em 1652 na Capela Real, podemos ver o Vieira dividido entre aquilo que estava obrigado a dizer e aquilo em que realmente acreditava a respeito do Universo. Primeiro, negando, ele diz: "Copérnico, insigne matemático do próximo século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou ou quis demonstrar (posto que erradamente), que não era o sol o que se movia e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte que, quando a terra dá meia volta, então descobre o sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta, então lhe desaparece o sol, e dizemos que se põe." E continua, agora com fé: "E a maravilha deste novo invento, é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros e medidas dos tempos, com a mesma pontualidade e certeza com que até agora se tinham observado e estabelecido na suposição contrária."

Neste campo Vieira também conhece a dúvida que surge na primeira metade da idade moderna com respeito ao que existe entre os objetos e a mente, ou o que existe no espaço entre os astros, dado que, se o vácuo existe, então seria forçoso admitir que todas as forças e impressões se dão por um poder de influência à distância, sem nada a permear entre os objetos e os sentidos. Esta questão, ainda hoje mal resolvida, tem uma alusão no Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, pregado na Capela Real em 1670, onde Vieira diz: "Admirável é a diligência e cuidado que a natureza põe em impedir o vácuo, e que em todo o universo não haja lugar vazio".

Disputatio

Ser um filósofo moderno não erradicou do vocabulário de Vieira os jargões da escolástica nem o tirou-lhe o gosto pelas disputas com que os professores jesuítas buscavam aguçar a inteligência dos jovens discípulos. No Sermão do Rosário Vieira é o velho racionalista, e se propõe um questão daquelas insolúveis, tão a propósito para os jogos dialéticos: "Perguntam os filósofos se Deus pode fazer tudo quanto pode? Uns negam, outros afirmam, e uns e outros se implicam. Porque depois de Deus fazer tudo o que pode, ou pode fazer mais alguma coisa ou não? Se não pode, deixou de ser Deus, porque não há Deus sem onipotência. E se pode, segue-se que aquilo que fez, não era tudo", não e perfeito.

Outra manifestação desse gosto pelas disputas é a citada participação sua no torneio filosófico havido nos salões do palácio da Rainha Cristina, em Roma. No desafio, o Padre Jesuíta Jerônimo Cataneo defendeu a posição de Demócrito com respeito à avaliação da vida, enquanto Vieira defendeu a posição de Heráclito. Demócrito ria sempre e Heráclito, chorava. Diz, mais ou menos, "Se no paraíso estava ociosa a potência do chorar, na miséria de hoje está ociosa a potência do rir". Considerando a maldade do homem diz que ao certo o homem deveria chorar a respeito de sua própria maldade, mas então dá-se um paradoxo: Se não chora, mostra que não é racional: e se ri da sua própria maldade, é uma fera, mostra que também os irracionais, as feras, riem. (Sermões, Porto, 1909, vol. XV, p. 399)

(Rubem Queiroz Cobra , Doutor em Geologia e bacharel em Filosofia, Site original:www.cobra.pages.nom.br)

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