quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

"Para ouvir os sermões"

Depois que estudantes portugueses de Coimbra que defendiam a reinstalação da Inquisição queimaram uma efígie que o representava, o padre Antônio Vieira -que conseguira do papa a suspensão das atividades do Santo Ofício- ironizou em carta datada de 1682: "Não merecia Antônio Vieira aos portugueses, depois de ter padecido tanto por amor da sua pátria e arriscado tantas vezes a vida por ela, que lhe antecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honradas exéquias".

No quarto centenário de seu nascimento, que se completa na próxima quarta-feira, dia 6, Vieira teria que trocar o sarcasmo pelo agradecimento: seus compatriotas, agora, celebram não só a efígie como a vida e a obra, dedicando-lhe um ano de comemorações, o Ano Vieirino, cujo ponto alto será o lançamento da edição crítica dos três primeiros dos 15 volumes dos "Sermões". A publicação sairá pela Imprensa Nacional/ Casa da Moeda de Portugal, a princípio sem previsão de chegar ao Brasil.

A obra resgata o português da época e traz um aparato crítico notável. Pela primeira vez desde as primeiras edições, será possível ler os "Sermões" da forma como foram escritos e corrigidos pelo padre.

"Desde lá o texto de Vieira foi sendo modificado de acordo com as mudanças da língua portuguesa, além de muitas traduções erradas do latim. Nossa proposta é publicar o texto autêntico, e fizemos as correções que foram indicadas pelo padre na errata que consta na segunda edição", explica o professor Arnaldo do Espírito Santo, que coordena a equipe de dois professores, Cristina Pimentel e Ana Paula Banza, que recupera a obra original e constrói o aparato crítico. Também há um grupo de professores de outras disciplinas (literatura, história e filosofia) que fazem uma consultoria.

Comemoração

O primeiro dos 15 volumes previstos será lançado nesta semana, inaugurando o "Ano Vieirino", homenagem que se estenderá até o dia 6 de fevereiro de 2009. Nesse período estão programados eventos para destacar a obra de um dos maiores estilistas do idioma.Os volumes 2 e 3 serão lançados em novembro, durante o Congresso Internacional Ver, Ouvir, Falar. O evento acontecerá na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade de Lisboa, que, juntamente com a Província Portuguesa da Companhia de Jesus, organizam a comemoração.

Haverá ainda seminários, apresentação de peças teatrais, espetáculos de música e exibição de filmes.

A Universidade de Aveiro também festeja a efeméride. Também em novembro, realizará o Congresso Internacional Língua, Identidade, Cidadania e o Festival Internacional de Culturas em Língua Portuguesa. Atualmente, financia o Cruzeiro Histórico Identidade e Cidadania, que vem visitando os lugares percorridos pelo padre entre Portugal e o Brasil.

Um veleiro com uma equipe coordenada pelo professor Abreu Freire iniciou a viagem, partindo de Aveiro, em 17 de março do ano passado. Passou por Cabo Verde, Fernando de Noronha, Salvador, Recife, Ceará, São Luís do Maranhão, Belém do Pará e começou a regressar em 30 de outubro. Durante a maior parte do mês de janeiro, a embarcação ficou parada em Hamilton, nas Bermudas, depois de ter sido tombada por uma tempestade tropical.

A expedição está sendo contada em um diário virtual (http://wsl.cemed.ua.pt/diariobordo). A chegada a Aveiro será em dezembro e a viagem virará um documentário para a TV portuguesa.

Os 15 volumes dos "Sermões" serão publicados, segundo o cronograma, até 2010. Está previsto também um 16º volume com as introduções, índices e textos do "Índice das Coisas Mais Notáveis", uma visão sistemática da obra escrita pelo padre no fim de cada volume.

Os sermões foram editados entre 1679 e 1748. Na reedição do primeiro volume, o Padre Vieira inseriu uma errata que foi reproduzida nas edições seguintes, mas sem que o texto fosse corrigido. A edição crítica inseriu as correções e retirou mudanças no idioma feitas ao longo do tempo.

Modernização

"As diferenças entre as primeiras edições e as seguintes não foram feitas pelo Padre Vieira, mas por editores que, além de cometerem erros de tradução, modernizaram o português de Vieira", diz Espírito Santo. "As edições posteriores à morte dele trazem as viradas do idioma e mostram como o português de Portugal ficou mais erudito.

"Também integrante da equipe, a professora Cristina Pimentel diz que o português de Vieira é o que se falava em Portugal no século 17. "É o que se fala no Brasil até hoje. Palavras como sutil, que depois virou subtil, por exemplo, e no Brasil se manteve sutil."

Essas mudanças foram inseridas e explicadas no aparato crítico. Um glossário no final do volume revela palavras que receberam nova forma ou novo significado: padar (paladar); encontrar (contrariar); defender (proibir); correr à posta (ir depressa); ganância (ganho).Outro aspecto importante alterado ao longo das edições dos "Sermões", segundo Pimentel, foi o uso da pontuação e das letras maiúsculas. O Padre Vieira, explicou, usava a pontuação para dar o aspecto de oratória, dos discursos falados. O professor Espírito Santo lembra que as alterações transformaram os sermões num texto para ser lido, e não falado, como era originalmente. "E as letras maiúsculas, usadas para realçar certas palavras, foram transformadas em minúsculas.

"O trabalho de construção da edição crítica foi desenvolvido numa sala da Universidade Católica Portuguesa, que é depositária de uma parte da Biblioteca da Sociedade Científica de Göerres, com sede na Alemanha. "Pudemos consultar edições semelhantes às que o Padre Vieira usou na época para escrever seus textos", disse o estudioso. "Foi nosso trunfo."

Versões

O autor dos "Sermões", que consultou bibliotecas de Lisboa, Coimbra e Roma, usou várias versões e traduções da Bíblia reunidas em compilações como a "Bibliorum Sacrorum", editada em Londres em 1653.

O livro trazia traduções da Bíblia para o grego, latim e outras línguas. Cada página continha um trecho bíblico. "Essa obra nos permitiu entender como Vieira fazia referências a diferentes edições e versões da Bíblia e conhecer mais o seu perfil intelectual, suas leituras e preferências.

"Manuel Cândido Pimentel, professor e presidente da comissão organizadora do Ano Vieirino, diz que a obra será a primeira edição crítica portuguesa dos "Sermões".Nas universidades, diz Pimentel, o interesse por Vieira continua por causa dos campos múltiplos de análise: retórica, hermenêutica, poética, iconografia, filosofia, teologia, diplomacia, história. A obra desperta ainda tanto interesse, segundo o secretário do Ano Vieirino, Luís Loia, por causa da universalidade de temas.

Mais dois projetos pretendem estimular o estudo e divulgação da obra do autor dos "Sermões": a criação de uma rede internacional de universidades e a publicação, provavelmente no início de 2009, dos textos diplomáticos do Padre Vieira, disse Pimentel.

(BRUNO GARSCHAGEN, Folha de S. Paulo 3.2.08)