Na sessão solene na Câmara Municipal de Salvador, no dia 11.03.2008, em homenagem ao IV Centenário de nascimento do Pe. Antônio Vieira
O menino Antônio Vieira chegou à Cidade da Bahia nos idos de 1614, vindo de Lisboa, com a família. Tinha seis anos de idade. As ruas desta cidade, então capital da Colônia, testemunharam a trajetória do menino que morava nos arredores do Mosteiro de São Bento e freqüentava as aulas do Colégio do Jesuítas, no Terreiro de Jesus. O Paço Municipal, este edifício em que nos encontramos agora, ficava bem no meio do trajeto que o pequeno Antônio fazia todos os dias até à escola. Esta cidade viu aquele menino crescer “em idade, sabedoria e graça”, até se tornar o gigante que atravessou o séc. XVII, deixando a sua marca definitiva na nossa história. O jovem que aos 15 anos, escolhendo servir à maior glória de Deus, desafiou o mundo – disse não ao próprio pai que queria vê-lo noutra posição, noutra carreira - para se tornar jesuíta, amadureceu no confronto com a dura realidade do seu tempo.
Tendo recebido toda a sua formação acadêmica aqui, no Colégio dos Jesuítas da Bahia, tornou-se o maior autor de língua portuguesa do século XVII, um dos mais celebrados oradores sacros de todos os tempos.
Para se ter uma idéia do – digamos – magnetismo de sua oratória, vejamos a descrição que faz um de seus biógrafos, o padre André de Barros: “Correu fama e antes de repontar o dia, começou a ocupar-se o largo terreiro adjacente ao Colégio. Via-se das janelas a multidão e prevendo-se as conseqüências dela, celebraram-se as missas a portas fechadas. Mas, logo que se abriram e entrou a imensa turba, viu-se tomado o amplíssimo espaço, impedindo só o respeito o não subirem também aos altares. Chegadas as horas de sair a missa solene para o altar-mor, como era grande a multidão de gente, foi dificultoso o passarem com decência os celebrantes, não sendo menor depois a dificuldade para chegar ao púlpito o esperado orador.”.
Podemos nos perguntar: Qual a relevância da palavra do Pe. Antônio Vieira para os dias de hoje? O que a vida e a obra de um jesuíta que viveu 400 anos atrás pode nos inspirar? Sugiro que escutemos o próprio Antônio Vieira.
Sobre a pretensão de nobreza, de prestígio, da honra vã do mundo, ele diz: “A verdadeira fidalguia é a ação... Cada um é as suas ações, e não outra coisa... Quando vos perguntarem quem sois vós, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações... O que fazeis, isso sois, nada mais.”
A igualdade de todos perante Deus é matéria de reflexão de Vieira: “A lei de Cristo é uma lei que se estende a todos, com igualdade, e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno: ao alto e ao baixo: ao rico e ao pobre: a todos mede pela mesma medida”, diz o Pe. Vieira no Sermão de Santo Antonio.
Sobre a escravização dos índios, causa que consumiu não poucos anos de sua longa e atribulada vida de missionário, junto com os seus companheiros jesuítas pelos sertões do Brasil, faz a seguinte reflexão: “Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados... porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo... acomodando-nos à fraqueza do nosso poder e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defesa...à força de persuasões e promessas (que se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou morrer junto das nossas...não só não lhes defendemos a liberdade, mas pactuamos com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meio cativos, obrigando-os a servir alternadamente a metade do ano” (Sermão da Epifania, l662).
A escravidão negra, ferida ainda aberta na nossa consciência de povo brasileiro, foi também tema de suas exortações. Em um dos Sermões do Rosário, compara os escravos negros ao próprio Cristo. Ele diz: “Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão... Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo.” Falando da crueldade dos senhores de engenho no trato com os escravos: “Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos... Não há trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas... as abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.” Em outro texto, Vieira convida a uma reflexão a respeito da dignidade dos negros, filhos de Deus e herdeiros do Cristo: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja para mim matéria de profunda meditação... Comparo o presente com o futuro, o tempo com a Eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus, que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para doces infernos, um nesta vida, outro na outra.”
Condena o luxo e a riqueza dos abastados de seu tempo, em contraste com o sofrimento dos pobres: “Se as galas, as jóias e as baixelas ... foram adquiridas com tanta injustiça e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram, haviam de verter sangue; como se há-de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis a quem despistes para as vestir a elas, estão nus e morrendo de frio; como se há-de ver a fé, nem pintadas nas vossas paredes?” (Sermão da Quinta Dominga da Quaresma)
A corrupção dos governantes, mal secular que envergonha nossa civilização, é motivo também da denúncia do jesuíta profeta. No Sermão do Bom ladrão, ele diz: “O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam”.
Sobre o Brasil e a Bahia, e a ganância dos que exploravam as riquezas desta terra, diz Vieira no final do Sermão da Visitação: “quero acabar este sermão com uma profecia alegre...e é que desta vez se há de restaurar o Brasil... Muitos transes... tens padecido, desgraciado Brasil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam palácios com os pedaços de tuas ruínas, muitos comem o seu pão ou o pão não seu com o suor do teu rosto; eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo; eles por ti vivendo em prosperidade, tu por eles a risco de expirar. Mas agora alegra-te, anima-te, torna em ti, e dá graças a Deus, que já por mercê sua estamos em tempo que se concorrermos com o nosso suor, há de ser para a nossa saúde.” ... “Anime-se, pois, a fidelidade e liberalidade deste povo a se socorrer e ajudar nesta causa tão justa e tão sua, estando mui certo e seguro que se der o suor, se der o sangue, não há de ser para que outros vivam e triunfem, senão para que nós vivamos e triunfemos de nossos inimigos. Tudo o que der a Bahia, para a Bahia há de ser; tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.”
A palavra do Pe. Antônio Vieira, lapidada em meio aos conflitos políticos e religiosos da Colônia e da Metrópole no século XVII, ecoa hoje profética, denunciando os nossos pecados como nação, como Igreja, como povo. E anuncia a redenção dos que preferem trilhar o caminho apontado por Jesus no seu Evangelho: o caminho da caridade, da ética, da solidariedade com os empobrecidos, da promoção da justiça que a própria fé exige. O caminho da retidão do coração, da consciência limpa.
Homens e mulheres do século XXI, se quisermos de fato encarar os males de nosso mundo, de nosso país, de nossa cidade, com o olhar crítico, com a visão limpa e o desejo de escrever a “história do nosso presente e do nosso futuro”, olhemos o exemplo deste homem que nos precedeu no limiar de nossa história enquanto nação.
A palavra – eterna! – de Vieira atravessa os séculos. E hoje é fonte de inspiração a todos nós, que desejamos construir um mundo mais humano, mais bonito, onde o ser humano possa brilhar, como a glória de Deus!
Pe. Miguel de Oliveira Martins Filho sj
Padre jesuíta, assistente da Direção,
Professor e Orientador Espiritual
no Colégio Antônio Vieira.
miguel@jesuitas.org.br
O menino Antônio Vieira chegou à Cidade da Bahia nos idos de 1614, vindo de Lisboa, com a família. Tinha seis anos de idade. As ruas desta cidade, então capital da Colônia, testemunharam a trajetória do menino que morava nos arredores do Mosteiro de São Bento e freqüentava as aulas do Colégio do Jesuítas, no Terreiro de Jesus. O Paço Municipal, este edifício em que nos encontramos agora, ficava bem no meio do trajeto que o pequeno Antônio fazia todos os dias até à escola. Esta cidade viu aquele menino crescer “em idade, sabedoria e graça”, até se tornar o gigante que atravessou o séc. XVII, deixando a sua marca definitiva na nossa história. O jovem que aos 15 anos, escolhendo servir à maior glória de Deus, desafiou o mundo – disse não ao próprio pai que queria vê-lo noutra posição, noutra carreira - para se tornar jesuíta, amadureceu no confronto com a dura realidade do seu tempo.
Tendo recebido toda a sua formação acadêmica aqui, no Colégio dos Jesuítas da Bahia, tornou-se o maior autor de língua portuguesa do século XVII, um dos mais celebrados oradores sacros de todos os tempos.
Para se ter uma idéia do – digamos – magnetismo de sua oratória, vejamos a descrição que faz um de seus biógrafos, o padre André de Barros: “Correu fama e antes de repontar o dia, começou a ocupar-se o largo terreiro adjacente ao Colégio. Via-se das janelas a multidão e prevendo-se as conseqüências dela, celebraram-se as missas a portas fechadas. Mas, logo que se abriram e entrou a imensa turba, viu-se tomado o amplíssimo espaço, impedindo só o respeito o não subirem também aos altares. Chegadas as horas de sair a missa solene para o altar-mor, como era grande a multidão de gente, foi dificultoso o passarem com decência os celebrantes, não sendo menor depois a dificuldade para chegar ao púlpito o esperado orador.”.
Podemos nos perguntar: Qual a relevância da palavra do Pe. Antônio Vieira para os dias de hoje? O que a vida e a obra de um jesuíta que viveu 400 anos atrás pode nos inspirar? Sugiro que escutemos o próprio Antônio Vieira.
Sobre a pretensão de nobreza, de prestígio, da honra vã do mundo, ele diz: “A verdadeira fidalguia é a ação... Cada um é as suas ações, e não outra coisa... Quando vos perguntarem quem sois vós, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações... O que fazeis, isso sois, nada mais.”
A igualdade de todos perante Deus é matéria de reflexão de Vieira: “A lei de Cristo é uma lei que se estende a todos, com igualdade, e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno: ao alto e ao baixo: ao rico e ao pobre: a todos mede pela mesma medida”, diz o Pe. Vieira no Sermão de Santo Antonio.
Sobre a escravização dos índios, causa que consumiu não poucos anos de sua longa e atribulada vida de missionário, junto com os seus companheiros jesuítas pelos sertões do Brasil, faz a seguinte reflexão: “Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados... porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo... acomodando-nos à fraqueza do nosso poder e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defesa...à força de persuasões e promessas (que se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou morrer junto das nossas...não só não lhes defendemos a liberdade, mas pactuamos com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meio cativos, obrigando-os a servir alternadamente a metade do ano” (Sermão da Epifania, l662).
A escravidão negra, ferida ainda aberta na nossa consciência de povo brasileiro, foi também tema de suas exortações. Em um dos Sermões do Rosário, compara os escravos negros ao próprio Cristo. Ele diz: “Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão... Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo.” Falando da crueldade dos senhores de engenho no trato com os escravos: “Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos... Não há trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas... as abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.” Em outro texto, Vieira convida a uma reflexão a respeito da dignidade dos negros, filhos de Deus e herdeiros do Cristo: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja para mim matéria de profunda meditação... Comparo o presente com o futuro, o tempo com a Eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus, que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para doces infernos, um nesta vida, outro na outra.”
Condena o luxo e a riqueza dos abastados de seu tempo, em contraste com o sofrimento dos pobres: “Se as galas, as jóias e as baixelas ... foram adquiridas com tanta injustiça e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram, haviam de verter sangue; como se há-de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis a quem despistes para as vestir a elas, estão nus e morrendo de frio; como se há-de ver a fé, nem pintadas nas vossas paredes?” (Sermão da Quinta Dominga da Quaresma)
A corrupção dos governantes, mal secular que envergonha nossa civilização, é motivo também da denúncia do jesuíta profeta. No Sermão do Bom ladrão, ele diz: “O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam”.
Sobre o Brasil e a Bahia, e a ganância dos que exploravam as riquezas desta terra, diz Vieira no final do Sermão da Visitação: “quero acabar este sermão com uma profecia alegre...e é que desta vez se há de restaurar o Brasil... Muitos transes... tens padecido, desgraciado Brasil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam palácios com os pedaços de tuas ruínas, muitos comem o seu pão ou o pão não seu com o suor do teu rosto; eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo; eles por ti vivendo em prosperidade, tu por eles a risco de expirar. Mas agora alegra-te, anima-te, torna em ti, e dá graças a Deus, que já por mercê sua estamos em tempo que se concorrermos com o nosso suor, há de ser para a nossa saúde.” ... “Anime-se, pois, a fidelidade e liberalidade deste povo a se socorrer e ajudar nesta causa tão justa e tão sua, estando mui certo e seguro que se der o suor, se der o sangue, não há de ser para que outros vivam e triunfem, senão para que nós vivamos e triunfemos de nossos inimigos. Tudo o que der a Bahia, para a Bahia há de ser; tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.”
A palavra do Pe. Antônio Vieira, lapidada em meio aos conflitos políticos e religiosos da Colônia e da Metrópole no século XVII, ecoa hoje profética, denunciando os nossos pecados como nação, como Igreja, como povo. E anuncia a redenção dos que preferem trilhar o caminho apontado por Jesus no seu Evangelho: o caminho da caridade, da ética, da solidariedade com os empobrecidos, da promoção da justiça que a própria fé exige. O caminho da retidão do coração, da consciência limpa.
Homens e mulheres do século XXI, se quisermos de fato encarar os males de nosso mundo, de nosso país, de nossa cidade, com o olhar crítico, com a visão limpa e o desejo de escrever a “história do nosso presente e do nosso futuro”, olhemos o exemplo deste homem que nos precedeu no limiar de nossa história enquanto nação.
A palavra – eterna! – de Vieira atravessa os séculos. E hoje é fonte de inspiração a todos nós, que desejamos construir um mundo mais humano, mais bonito, onde o ser humano possa brilhar, como a glória de Deus!
Pe. Miguel de Oliveira Martins Filho sj
Padre jesuíta, assistente da Direção,
Professor e Orientador Espiritual
no Colégio Antônio Vieira.
miguel@jesuitas.org.br
1 comentário:
MARAVILHOSO!
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