O magistério plural do padre António Vieira não se esgotou na defesa da condição humana ou na diplomacia, de par com prédicas do alto do púlpito tem-se omitido ou subalternizado, ao evocar os créditos do afamado jesuíta, que os céus foram para ele algo mais do que um local piedoso e refrigério das almas; leitor de Johannes Kepler, o grande matemático, Vieira recorreu com frequência aos seus argumentos. Aliás, o elemento celeste esteve, amiúde, em uso na palavra e na escrita modelar do mestre, mormente a pretexto da observação de cometas e consequentes implicações proféticas, ajustadas à causa sebastianista da Restauração portuguesa.
Num relance sobre as notificações astronómicas do pregador jesuíta, vemos que este teorizava sobre a manifestação dos cometas ao jeito de alguns dos seus mais considerados coevos, como o referido Kepler, o matemático suíço Jacques Bernouilli ou o filósofo italiano Tommaso Campanella. Se António Vieira acalentava, sem equívocos, uma figuração ideal dos cometas para uso teológico, como "avisos de Deus", por outro lado, procurou sempre distanciar-se da astrologia "judiciária", prognóstica.
Esta faceta do jesuíta não prejudica a sua feição mista de físico natural e teólogo um breve relance pelas "Cartas" do insigne jesuíta confirmam-nos a sua proficiente catalogação de inúmeros eventos astronómicos a que procedeu, mormente no decurso da sua estada em Coimbra e, mais tarde, em terras brasileiras, na Baía. Nas suas trocas epistolares com D. Rodrigo de Meneses e o Marquês de Gouveia, Vieira denota a sua acuidade face a todos os episódios astronómicos, o cuidado rastreio de toda a espécie de prodígios celestes e atmosféricos que remete invariavelmente para a sua "cometomância" político-messiânica. Típica desta permanente atenção aos céus é uma missiva endereçada ao cónego Francisco Barreto: "Cá apareceu um cometa aos 6 de Dezembro, dia em que foi coroado El-Rei, muito maior que o grandíssimo que lá vimos no ano de oitenta, em figura de palma, que se estendia desde o horizonte até ao zénite e levava o curso para a parte austral tão arrebatado qual nunca se viu em outro".
Textos de António Vieira, como o opúsculo "Voz de Deus ao mundo", ilustram as suas leituras sobre o significado dos cometas, das suas origens e matéria constituinte, do aparecimento de novas estrelas, do posicionamento dos planetas da ordem ptolomaica, e dos vaticínios políticos que ele recolhe das diversas conjugações celestes. No que toca à matéria e essência cometárias, o emérito jesuíta mostra, com clareza, num dos seus sermões, em 1641, a sua fidelidade às concepções de Aristóteles, subscrevendo que "a matéria dos cometas são os vapores ou exalações da terra subidas ao céu". Deve-se a Vieira a primeira descrição mundial do cometa Jacob ( 1695 ), rastreado por ele na Baía aos 87 anos. Então, o pregador retorna a Kepler, confessando dúvidas acerca da explicação aristotélica para a formação daqueles corpos celestes.
De quando em vez, emerge a experiência sensorial do nosso orador sacro, simultaneamente descrente da arquitectura fabulosa dos signos do Zodíaco, projectados no firmamento, conquanto firmemente convicto dos "sinais" que dele deduz. De facto, Vieira assume um cepticismo perceptivo unilateral perante as aparências e "mentiras do céu", impugnando as construções dos matemáticos e dos astrólogos face a "este céu cá de baixo", o "céu da terra", numa amostra de realismo súbito e paradoxal. Percebe-se qual o céu visado pelo pregador o "lá de cima", como diz. De resto, "cuida o vulgo que vê o Céu e engana- -se, porque não chega lá a nossa vista. Isto que chamamos céu é uma mentira azul: e se as mentiras do céu da terra são tão formosas, quais serão as verdades do Céu"?
Adepto do geocentrismo, sinal da impoluta estabilidade da sua cosmovisão, não espanta a divergência de Vieira ante Copérnico, provada nos seus sermões. Todavia, deixa ao livre arbítrio dos seus ouvintes/leitores a escolha do modo como queiram representar a sua relação com o Sol, vincando embora a sua postura. Em defesa dos juízos eclesiásticos, o homem de fé socorre-se de excertos bíblicos para asseverar a imobilidade intransigente do orbe terrestre. Como poderia Copérnico ter lugar nesta centralidade terrestre, insondável e única, na lógica religiosa centrípeta do "mundo" de António Vieira?
(in "Jornal de Notícias", 11.3.08)
segunda-feira, 10 de março de 2008
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