Passou quase despercebida a data do quarto centenário de nascimento do Padre Antonio Vieira, um dos mais importantes missionários, oradores, escritores, diplomatas, e defensores da unidade territorial na história colonial luso-brasileira. Exceto o belo e oportuno texto do padre e professor José Carlos B. Aleixo, publicado no Correio Braziliense em 11 de fevereiro, pouco mais foi escrito sobre a magna data.
Natural de Lisboa, nascido em 6 de fevereiro de 1608, era filho de Cristóvão Vieira Ravasco e de Maria de Azevedo, “fidalgos de nobre linhagem”. No final de 1615 transferem-se para o Brasil, indo residir em Salvador, onde o pai fora nomeado escrevente do Tribunal de Relação.
Aos 15 anos contraria os pais e ingressa como noviço no colégio dos jesuítas. Um ano depois, com a cidade sob ameaça de invasão pelos soldados holandeses, fogem padres e seminaristas para se abrigar entre indígenas. Aos 17 anos já se achava encarregado de elaborar, em latim, o relatório anual da congregação aos superiores em Roma. Aos 18 passa a lecionar retórica no seminário de Olinda e, em 1633, profere o primeiro sermão público, intitulado Quarta dominga da quaresma, em que toma como mote o versículo 12 do capítulo 6 do Evangelho de São João, sobre a multiplicação dos pães: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca”. Em 1635, finalmente, recebe as ordens sacerdotais.
Com parte do território colonial dominado pela Holanda, e ante os repetidos fracassos dos nossos soldados e colonos diante de tropas melhor aparelhadas, Vieira, em 1640, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da cidade de Salvador, prega o sermão “Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”, na opinião dos críticos o mais veemente libelo contra o desamparo divino jamais lavrado em língua portuguesa. Empunhando o Salmo 44 como estandarte, depreca: “Acorda, ó Senhor! Por que dormes? Acorda! Não me rejeites para sempre. Por que escondes a tua face, e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão?” Escreve João Viegas, no posfácio de A missão de Ibiapaba, “Vieira chama Deus ao conflito. Irá Ele permitir que o Brasil caia nas mãos de calvinistas?” Por certo não, eis que, logo depois, incapazes de quebrar a resistência dos sitiados, os agressores levantam o cerco e se retiram.
Vieira foi, antes de tudo, o missionário evangelizador que se opôs às violências praticadas contra os nativos, submetidos a trabalho escravo antes da chegada dos negros africanos, atuação que lhe trouxe o ódio de colonizadores e a hostilidade de representantes da Coroa portuguesa.
Sob distintos pontos de vista é insuperável a obra sacra e documental deixada por Vieira. São 15 volumes de sermões e três de cartas, escritos esparsos, alguns extraviados e outros não concluídos, apesar de haver trabalhado doente e quase cego até as vésperas da morte, em 18 de julho de 1697, aos 90 anos de idade. Algumas das obras-primas de Vieira permanecem surpreendentemente atuais, como a Carta de 1654, em que D. João IV pede-lhe que opine sobre haver na capitania do Pará dois capitães-mores ou um só governador. Responde o jesuíta que “menos mal lhe parecia que houvesse um só ladrão do que dois”, e que “mais dificultoso serão de achar dois homens de bem do que um”. Invoca, a seguir, o romano Catão, a quem fora indicada a designação de dois comandantes para provimento de duas praças-fortes. Redargüiu o imperador que nenhum dos dois nomes o satisfaziam, “um porque nada tinha; outro porque nada lhe bastava”. Conclui Vieira, “e eu não sei qual a maior tentação, se a necessidade, se a cobiça”.
Revestido do mesmo ímpeto acusatório é o sermão do Bom Ladrão, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655. Narra Vieira que, tendo D. J oão III solicitado a São Francisco Xavier que o informasse sobre o estado em que se encontravam os interesses portugueses na Índia, respondeu-lhe o santo que ali o verbo rapio (arrebatar, roubar, pilhar, saquear) era conjugado em todos os tempos e modos. Furtava-se no indicativo, imperativo, mandativo, optativo, conjuntivo, potencial, permissivo, infinitivo, “porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lhe deixam raízes em que se vão continuando os furtos”. Acrescentou Vieira: “Não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se houvesse”.
Numa época em que a moralidade pública baixou a níveis críticos, e tanto a política como as confissões religiosas transformaram-se em fontes de súbito e duvidoso enriquecimento, não é de surpreender o silêncio que se fez em torno do quarto centenário de nascimento do extraordinário e santo jesuíta. Padre Vieira, com efeito, caiu no esquecimento.
(Almir Pazzianotto Pinto, in O Imparcial, São Luis do Maranhão)
quinta-feira, 13 de março de 2008
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